Rezando pelos Fiéis Defuntos



Pax et bonum!

Hoje é Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos, que muitos chamam de Dia de Finados. Insisto no nome católico, nome litúrgico, porque é mais claro na sua finalidade.
Literalmente significa que se faz memória de todos os cristãos que morreram na amizade com Deus (fiéis). Então não se reza pelos ateus, hereges e infiéis? Não. Não é esta a finalidade deste dia. Diria melhor que neste dia (02 de novembro) rezamos pelos membros vivos da Igreja que já passaram desta vida. Ora, se rezamos por estes, é porque apresentam alguma necessidade. Não são, pois, os que já estão na glória, já que lá não precisam de oração. E quem são os fiéis por quem rezamos depois de mortos e que não estão no céu? Resposta: as almas do purgatório.

Para se entender bem a questão, temos que relembrar algumas verdades:
- Constituição do homem em duas naturezas;
- Realidade da morte;
- Juízo particular;
- Inferno, Purgatório e Céu;
- Aqueles por quem rezamos.

I. CONSTITUIÇÃO DO HOMEM EM DUAS NATUREZAS

É simples compreender que o ser humano é constituído de duas naturezas. Uma delas, a física, material (o corpo), não precisa de demonstração. A ela estão ligados os fatos ou fenômenos fisiológicos. É uma realidade palpável e inquestionável.
Já os fenômenos que não estão restritos ao físico, como é o pensamento, as recordações, o raciocínio, os quais chamamos de psicológicos nos forçam admitir um segundo princípio no homem - é aquilo que chamamos de alma.
A nossa consciência percebe um princípio pelo qual nos temos como a mesma pessoa, idêntica, desde nossa primeira recordação até o momento presente, por mais que o corpo tenha se desenvolvido, se ferido, se renovado em suas células e tecidos, recebido sangue ou órgãos alheios, perdido membros, em poucas palavras, mudado completamente. Este princípio que constitui nossa identidade pessoal é aquele mesmo que chamamos de alma.
Por não depender ou estar restrita ao físico, dizemos que a alma é espiritual, ao contrário do corpo que é material.
A fé católica professa a dicotomia (corpo e alma) e não a tricotomia (corpo, alma e espírito). Clássicas três faculdades do homem, como sejam vontade, entendimento e memória (ou sensibilidade, noutros pensadores) são todas compreensíveis como faculdades de um só princípio ou substância, aquele espiritual: a alma. Fora isso, as faculdades e sentidos do homem são os que dependem do seu corpo como, por exemplo, os cinco sentidos (visão, audição, olfato, paladar e tato).
Alguns relatos das Escrituras mostram essa divisão:
"Minha alma está sedenta de vós, e minha carne por vós anela como a terra árida e sequiosa, sem água". (Sl 62,2)
"Meu coração e minha carne exultam pelo Deus vivo". (Sl 83,3b)
"Não temais aqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma; temei antes aquele que pode precipitar a alma e o corpo na geena". (Mt 10,28)
"Aquela que não é casada cuida das coisas do Senhor, para ser santa no corpo e no espírito". (1Cor 7,34b)
"Assim como o corpo sem a alma é morto, assim também a fé sem obras é morta". (Tg 2,26)

II. REALIDADE DA MORTE

A morte é para nós a interrupção da atividade vital corporal. Podemos rapidamente pensar em coisas como parada cardíaca, perca total de sangue, parada respiratória, parada cerebral, etc. Há pessoas que relatam ter passado por experiências de quase morte, ou seja, sofreram algo que em condições normais constituiria a morte de qualquer outra pessoa, mas recobraram logo depois a atividade vital corporal.
Diríamos que aquilo que conhecemos por morte é a interrupção ou término da atividade vital corporal, de um modo irrecuperável. A partir daí, dá-se a decomposição da matéria.
Sendo a alma imaterial, ou seja, espiritual, não sofre decomposição, nem de átomos, células, tecidos ou órgãos, ou seja, não sofre a morte do corpo. Interessante também é que temos capacidade de provocar nossa morte corporal, mas ninguém é capaz de causar a extinção de sua própria alma.
A imortalidade da alma também é uma exigência da justiça divina (não podemos entrar agora no assunto dos atributos de Deus, pode ficar para outra postagem). Ora, na vida vemos pessoas boas serem humilhadas, esquecidas e morrerem sob muitos tormentos enquanto pessoas más recebem louvores, homenagens, morrem cercadas de toda espécie de bens e honrarias. Se Deus é justo e "cada um de nós dará conta de si mesmo a Deus" (Rm 14,12), um princípio nosso subsistirá para isso: a alma, que é imortal.

III. JUÍZO PARTICULAR

Depois de dar o assentimento à existência de Deus e a seus atributos, bem como à criação do homem, sua dupla constituição e a realidade da morte, chegamos inevitavelmente ao que chamamos de juízo particular, dado que Deus é justo e que os homens darão conta de seus pensamentos, palavras e obras. A Escritura diz: "está determinado que os homens morram uma só vez, e logo em seguida vem o juízo" (Hb 9,27), pelo que se conhece um juízo imediato à morte e a inconciliabilidade da crença na reencarnação com a doutrina cristã.
A justa retribuição, imediata ao juízo, está manifesta, por exemplo, na parábola que conta a história de um rico opulento e de um pobre Lázaro (Lc 16,19-31).

IV. INFERNO, PURGATÓRIO E CÉU

Todo juízo resulta numa sentença. Ao falarmos do homem e do que lhe acontece após a morte, falamos de retribuição, que acontece segundo as obras.
Aqui não acontece ainda a ressurreição da carne, pela qual a alma do homem se reunirá ao seu corpo, ainda que tenha sido cremado, despedaçado ou perdido, pois para Deus que o criou, nada é difícil ou impossível (noutra postagem podemos falar sobre a necessidade racional da ressurreição dos corpos).
Pois bem, vindo o juízo [particular] após a morte, depois deste vem a retribuição.
Os que tiverem morrido na amizade com Deus (em sua graça) e não necessitando de mais purificação pelas penas dos pecados, entrarão no céu.
Os que tiverem morrido na amizade com Deus, mas ainda carregando penas devidas pelos pecados já perdoados, passarão por uma purificação ou purgatório até que estejam nas disposições para gozar eternamente da Glória de Deus.
Os que não tiverem morrido na amizade com Deus, ou seja, sobretudo com pecados graves e dos quais não se manifesta um mínimo de arrependimento, entrarão no inferno. São os réprobos (=reprovados).
O Céu (glória, vida eterna, Reino de Deus, paraíso, bem-aventurança) é onde estão as almas aprovadas. Esta glória existe para os homens, como disse o Senhor (já tratando do juízo universal): "tomai posse do Reino que vos está preparado desde a criação do mundo" (Mt 25,34b). Lá se goza de Deus perfeitamente, numa felicidade indizível. A própria razão supõe esta felicidade, considerando que o homem estará na intimidade daquele que possui em grau infinito todas as perfeições.
O Inferno (condenação, abismo, fogo eterno) é onde estão as almas reprovadas. Esta desgraça existe não para os homens, como o Senhor atesta na mesma passagem acima: "Ide para o fogo eterno destinado ao demônio e aos seus anjos" (Mt 25,41b). Lá a alma sofre tormentos morais, como a eterna separação de Deus e o eterno remorso da consciência, e tormentos sensíveis. "Por uma visão momentânea, logo após a morte Deus se revela a todos os homens. Quando o pecador mergulha no tormento, seu primeiro grito não é de dor. Seu primeiro grito é de saudade de Deus".
O Purgatório é a purificação pela qual a alma passa para poder entrar no Céu. Daqui elas só partem para lá. No purgatório há penas sensíveis, pelas quais o homem satisfaz pelos pecados perdoados dos quais não pôde fazer uma devida reparação.
A razão concebe um "ponto intermediário" entre o estado de completa purificação e o de completa escravidão do pecado. Ademais, o apóstolo São João declarou: "Se alguém vê seu irmão cometer um pecado que não o conduza à morte, reze, e Deus lhe dará a vida; isto para aqueles que não pecam para a morte. Há pecado que é para morte; não digo que se reze por este" (1Jo 5,16). Eis a distinção entre os pecados, fato inegável.
Não se pode dizer quanto "tempo" alguém fica no Purgatório.
(Sobre o Juízo Universal podemos escrever outra postagem.)


V. AQUELES POR QUEM REZAMOS

É exatamente pelos que estão no purgatório que rezamos. Se já não entraram no Céu, é na purificação que cremos estarem os que foram fiéis de fato.
Como não se precisa de oração no Céu, e como não adianta orar pelos condenados, é por estes do Purgatório que rezamos, pedindo a Deus que sua purificação se complete o quanto antes, para que se lhes seja dado gozar do que tanto anseiam. Ora, todo fiel de Cristo, ao pensar no Céu, anela como o salmista: "Uma só coisa peço ao Senhor e a peço incessantemente: é habitar na casa do Senhor todos os dias de minha vida, para admirar aí a beleza do Senhor e contemplar o seu santuário" (Sl 26,4).
A crença de que nossas orações servem para estes irmãos está unida à de que as orações dos santos nos servem. Tudo isso faz parte da mesma profissão de fé na Comunhão dos Santos - comunhão de bens espirituais entre todos os cristãos (vivos e falecidos, na terra, no purgatório e no céu). De modo muito coerente estas duas datas litúrgicas estão bem unidas: na Solenidade de Todos os Santos honramos e pedimos oração a todos os da Igreja Triunfante (no Céu); na Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos oferecemos nossa oração e nosso sacrifício a Deus pela Igreja Padecente (no Purgatório).
Tal prática já é vista no II Livro de Macabeus (12,43-46), em breves orações escritas nas paredes das catacumbas e em primitivos escritores da Igreja como Tertuliano.
Por estas almas já rezamos, sobretudo, em todas as Missas, visto que no Cânon Romano e nas outras Orações Eucarísticas existe uma recordação e uma prece pelos fiéis que estão na purificação. Além da Missa temos a aplicação de indulgências pelas almas do purgatório. Aliás, toda indulgência recebida de Deus no dia da Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos, só a eles é aplicável.
É provável que muitos santos tenham recomendado a bela obra de caridade que é rezar pelas almas do purgatório. Diria que, quando um dos irmãos do purgatório, pelo qual rezamos, completar sua purificação e for admitido na pátria celeste, ele nos retribuirá, sendo um santo anônimo a interceder por nós.


VI. ESCLARECIMENTOS

Rezar pelos fiéis defuntos:
- é um dever de caridade;
- não é dirigir-se aos mortos;
- muito menos invocá-los;
- também não significa de maneira alguma que podemos tirar uma alma da condenação do inferno;
- é exercício da comunhão dos santos;
- não é rezar por quem não precisa;
- faz parte da doutrina e da prática cristã desde a antiguidade.


VII. APÊNDICE - Manual de Indulgências - Pelos fiéis defuntos

§ 1. Concede-se indulgência plenária, aplicável somente às almas do purgatório, ao fiel que:

1°55 Visitar devotamente o cemitério, a cada dia, de primeiro a oito de novembro, e aí rezar pelos defuntos, mesmo que só mentalmente;

2°56 Visitar devotamente uma igreja ou oratório e aí recitar o Pai nosso e o Creio, no dia da Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos (ou, de acordo com o Ordinário, no domingo anterior ou posterior à Solenidade de Todos os Santos).

§ 2. Concede-se indulgência parcial, aplicável somente às almas do purgatório, ao fiel que:

1°57 Visitar devotamente o cemitério e aí rezar pelos defuntos, mesmo que só mentalmente;

2°58 Rezar devotamente Laudes ou Vésperas do Ofício dos Defuntos ou a invocação Dai-lhes, Senhor.

Requiem æternam dona eis, Domine, et lux perpetua luceat eis. Requiescant in pace. Amen.
(Dai-lhes, Senhor, o descanso eterno. E a luz perpétua os ilumine. Descansem em paz. Amém.)

***

Por Luís Augusto - membro da ARS

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