Música Sacra a serviço da verdade


Os fiéis deveriam experimentar a universalidade da Igreja a nível local
Por Pe. Paul Gunter, OSB

ROMA, 24 de DEZEMBRO de 2010 (Zenit.org).- Quando Santo Agostinho escreveu "Qui cantat, bis orat" – quem canta reza duas vezes, facilmente se poderia reconhecer quanto o próprio caráter da música sacra torna isto diferente de um simples canto em grupo ou de uma elegante performance de um músico profissional do âmbito secular.
A convicção do fato de que a oração é dobrada se cantada, ao invés de apenas recitada, não se baseia tanto nos méritos do esforço humano, mas na necessidade de descrever a dimensão de admiração perante o divino [existente] na música sacra, seu aspecto artístico e emotivo, ao passo em que ela também é uma troca entre Deus, o Doador de todos os dons, e a resposta de amor do ser humano ao amor do Senhor onipotente.
Um amor maior buscará uma maior qualidade e não apenas uma quantidade mais abundante, e isto ocorre no momento em que a perseverança de um indivíduo ou um grupo fez progressos no âmbito musical e experimentou a beleza de suas consolações espirituais. A "Sacrosanctum Concilium" afirma que "a sagrada liturgia não esgota toda a atividade da Igreja" (nº 9) e muito acertadamente acrescenta que "antes que os homens possam vir à liturgia eles devem ser chamados à fé e à conversão". Ainda mais, o nº 10 esclarece que "é o cume para onde se volta a atividade da Igreja". Daí a liturgia ser precisamente a fonte da força necessária para todo trabalho apostólico. Onde quer que a liturgia da Igreja seja deixada ao acaso, a falta de coerência em seus frutos torna-se evidente. Os músicos litúrgicos devem ser valorizados e patrocinados de todas as formas possíveis, se se mostram próximos de alcançar um nível técnico que lhes permitirá comunicar, através da música sacra, o relacionamento com o tremendo mistério que é Deus. É esta percepção da santidade de Deus, especialmente tratada pela música sacra, que forma uma ponte que permite às pessoas descobrirem seu desejo por Deus e o desejo de conformarem suas vidas a ele.
A música sacra é oração ordenada a elevar os corações e as mentes a Deus. Para além dos desafios representados por preferências culturais ou pessoais, o propósito da música sacra é sempre o louvor de Deus. A participação ativa da assembleia deve ser ordenada para este fim, de modo que a dignidade da liturgia não seja comprometida e as possibilidades para uma participação efetiva no culto divino não sejam obscurecidas. A participação ativa não exclui os diferentes níveis de participação que, sobre eles mesmos, indicam que a "participação em ato" não é diminuída pelo fato de que não seja necessário que todos cantem tudo em todos os momentos. A música sacra deve ser conformada aos textos litúrgicos e a música devocional deve ser inspirada em textos litúrgicos ou bíblicos, tomando cuidado, em todo caso, para não ocultar a realidade eclesiológica da Igreja.
Papa João Paulo II explicou isto a alguns bispos dos Estados Unidos por ocasião da visita "ad limina" em 1998: "A participação plena não significa que todos façam tudo, pois isto levaria a uma clericalização do laicato e a uma laicização do sacerdócio; e isto não era o que o Concílio tinha em mente. A intenção é que  a liturgia, como a Igreja, seja hierárquica e polifônica, respeitando os diferentes papéis designados por Cristo e fazendo que todas as diferentes vozes se unam num grande hino de louvor". Daí, em sua expressão de fé religiosa, fidelidade textual e dignidade medida, a música sacra deve tornar-se símbolo de comunhão eclesial.
O caráter da música sacra não é diminuído quando ela é simples, no grau em que esta simplicidade é nobre, e não banal. O uso generalizado, embora proibido, de música secular gravada e canções "pop" em funerais justifica o distanciamento de tantos fiéis, que se sentem alheios à vida musical da Igreja. Canções "cult", doutrinalmente insípidas, normalmente tomam o lugar dos tesouros litúrgicos cheios de valor catequético, resultando que a cultura da música eclesial, em muitas paróquias, tem "entrado num beco sem saída do qual se pode dizer tudo menos o seu quo vadis (aonde vais)" – esta é a forma com a qual Joseph Ratzinger descreve a separação de cultura moderna de sua matriz religiosa (A New Song for the Lord. Faith in Christ and Liturgy Today, Crossroads, New York, 1996, p. 120).
A "Sacrosanctum Concilium" disse que ao Canto Gregoriano se deve dar o “primeiro lugar” (nº 116) e que o órgão de tubos "acrescenta um maravilhoso esplendor às cerimônias da Igreja e poderosamente eleva a mente humana a Deus e às realidades celestes" (nº 120). Enquanto os efeitos das interpretações antropológicas da pós-modernidade são intolerantes ao encontrar qualquer tendência de refazer o passado, as verdades universais e atemporais são benéficas para as pessoas de todos os tempos e lugares.
É necessário uma efetiva catequese litúrgica no centro da Nova Evangelização para promover uma imersão dos fiéis nos mistérios celebrados per ritus et preces – através dos ritos e das orações (cf. SC 48). O Motu Proprio de 2007, "Summorum Pontificum," ofereceu uma oportunidade determinante para a revitalização do Canto Gregoriano, naqueles lugares em que ele antes era praticado, bem como sua inserção em contextos nos quais ele ainda não é conhecido. Será, contudo, triste, se, por causa do desejo de se entender tudo, o uso do Canto Gregoriano nas paróquias se limitar à celebração da “forma extraordinária”, relegando a antiga língua deste canto à história da Igreja e a um símbolo de polarização. Entre as oportunidades pastorais, não é demais pedir que as pessoas tenham uma experiência da universalidade da Igreja a nível local, sendo capazes de cantar as partes que lhes correspondem em latim (cf. SC 54). Esta era a intenção dos Padres do Concílio. Com a devida moderação e com sensibilidade pastoral, esta prática seria unida harmonicamente à rica expressão da fé católica na língua vernácula.
Enfim, a harmonia e a ortodoxia da música sacra para uma verdadeira pregação do depósito revelado depende da fidelidade do Cristão à vida da graça, em uma decisão muito maior de viver coerentemente, como afirma de modo claro a Regra de São Bento: "Consideremos, pois, de que maneira cumpre estar na presença da Divindade e de seus anjos; e tal seja a nossa presença (...) que nossa mente concorde com nossa voz" (19,6-7).
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Pe. Paul Gunter, OSB, é professor no Pontifício Instituto Litúrgico de Roma e consultor do Ofício de Celebrações Litúrgicas do Sumo Pontífice.

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