O discurso inaugural do Card. Sarah no Sacra Liturgia UK 2016

Pax et bonum!

Nos últimos dias muitos blogs e sites fizeram eco às palavras do Cardeal Robert Sarah, proferidas em seu discurso inaugural na conferência Sacra Liturgia UK 2016, que se encerra hoje. Pensamos que poderíamos apenas repostar a notícia de algum blog, mas achamos por bem ir além.
Após algumas pesquisas, encontramos uma página em que o discurso parece estar colocado na íntegra e logo iniciamos um trabalho de tradução.
Abaixo segue esta nossa tradução, que ainda poderá passar por alguma melhoria. Todavia, tivemos pressa em colocar o texto sob a apreciação de nossos leitores e esperamos que seja de bom proveito.

SACRA LITURGIA UK 2016
Oratório de São Filipe Néri (Oratório de Brompton),
Londres, 05/07/2016

Em primeiro lugar quero expressar minha gratidão à S. Ema., o Cardeal Vincent Nichols, por suas boas vindas à Arquidiocese de Westminster e por suas gentis palavras de saudação. Assim também quero agradecer à S. Exa., o Bispo Dominique Rey, Bispo de Fréjus-Toulon, pelo seu convite para estar presente com vocês nesta terceira conferência internacional "Sacra Liturgia", e para apresentar a vocês o discurso de abertura nesta tarde. Parabenizo V. Exa. nesta iniciativa internacional de promover o estudo da importância da formação e da celebração litúrgicas na vida e na missão da Igreja.
Neste discurso quero colocar diante de vocês algumas considerações sobre como a Igreja Ocidental pode caminhar rumo a uma implementação mais fiel da Sacrosanctum Concilium. Fazendo isto, proponho a seguinte pergunta: "O que os Padres do Concílio Vaticano Segundo tinham em mente com a reforma litúrgica?" Assim, gostaria de considerar como suas intenções foram implementadas seguindo o Concílio. Enfim, gostaria de colocar algumas sugestões para a vida litúrgica da Igreja hoje, de modo que nossa prática litúrgica possa mais fielmente refletir as intenções dos Padres Conciliares.
É muito claro, penso, que a Igreja ensina que a liturgia católica é o lugar singularmente privilegiado da ação salvadora de Cristo em nosso mundo hoje, por meio da real participação em que recebemos sua graça e sua força que são tão necessárias para nossa perseverança e crescimento na vida cristã. É o lugar divinamente instituído onde vamos cumprir nosso dever de oferecer sacrifício a Deus, de oferecer o Único Verdadeiro Sacrifício. É onde percebemos nossa profunda necessidade de adorar o Deus todo-poderoso. A liturgia católica não é uma reunião humana ordinária.
Quero sublinhar um fato muito importante aqui: Deus, não o homem, está no centro da liturgia católica. Viemos adorá-lo. A liturgia não é sobre você e eu; não é onde celebramos nossa própria identidade ou conquistas ou onde exaltamos ou promovemos nossa própria cultura e costumes religiosos locais. A liturgia é primeiro e acima de tudo sobre Deus e o que ele fez por nós. Em sua Divina Providência, o Deus todo-poderoso fundou a Igreja e instituiu a Sagrada Liturgia por meio da qual somos capazes de oferecer-lhe um culto verdadeiro de acordo com a Nova Aliança estabelecida por Cristo. Fazendo isto, ao adentrar as exigências dos ritos sagrados desenvolvidos na tradição da Igreja, recebemos nossa verdadeira identidade e significado como filhos e filhas do Pai.
É essencial que compreendamos esta especificidade do culto católico, pois em décadas recentes temos visto muitas celebrações litúrgicas onde o povo, personalidades e conquistas humanas têm sido proeminentes demais, quase ao ponto da exclusão de Deus. Como o Cardeal Ratzinger escreveu uma vez: "Se a liturgia aparece antes de tudo como uma oficina (um workshop) para nossa atividade, então aquilo que é enssencial foi esquecido: Deus. Pois a liturgia não é sobre nós, mas sobre Deus. Esquecer Deus é o perigo mais iminentes de nossa era" (Joseph Ratzinger, Theology of the Liturgy, Collected Works vol. 11, Ignatius Press, San Francisco 2014, p. 593).
Precisamos ser completamente claros sobre a natureza do culto católico se pretendemos ler corretamente e implementar fielmente a Constituição do Concílio Vaticano II sobre a Sagrada Liturgia.
Por vários anos antes do Concílio, em países de missão e também nos mais desenvolvidos, houve muita discussão sobre a possibilidade de aumentar o uso das línguas vernáculas na liturgia, principalmente para as leituras da Sagrada Escritura, também para algumas das outras partes da primeira parte da Missa (que agora chamamos de "Liturgia da Palavra") e para o canto litúrgico. A Santa Sé já tinha dado várias permissões para o uso do vernáculo na administração dos sacramentos. Este é o contexto em que os Padres do Concílio falaram dos possíveis efeitos positivos em âmbito ecumênico ou missionário da reforma litúrgica. É verdade que o vernáculo tem um lugar positivo na liturgia. Os Padres estavam procurando isto, não autorizando a protestantização da Sagrada Liturgia ou aceitando que ela fosse submetida a uma falsa inculturação.
Eu sou africano. Deixem-me dizê-lo claramente: a liturgia não é o lugar de promover minha cultura. Melhor, é o lugar onde minha cultura é batizada, onde minha cultura é levada para o divino. Através da liturgia da Igreja (que os missionários levaram por todo o mundo) Deus fala a nós, muda-nos e torna-nos capazes de participar de sua vida divina. Quando alguém torna-se um cristão, quando alguém entra em plena comunhão com a Igreja Católica, recebe algo mais, algo que o transforma. Certamente, as culturas e outros cristãos trazem dons consigo para a Igreja - a liturgia dos Ordinariatos dos Anglicanos agora em plena comunhão com a Igreja é um belo exemplo disso. Mas eles trazem esses dons com humildade, e a Igreja, em sua materna sabedoria, faz uso deles como ela julgar apropriado.
Uma das mais claras e belas expressões das intenções dos Padres do Concílio encontra-se no início do segundo capítulo da Constituição, que considera o mistério da Santíssima Eucaristia. No artigo 48 lemos:
"É por isso que a Igreja procura, solícita e cuidadosa, que os cristãos não entrem neste mistério de fé como estranhos ou espectadores mudos, mas participem na ação sagrada, consciente, ativa e piedosamente, por meio duma boa compreensão dos ritos e orações; sejam instruídos pela palavra de Deus; alimentem-se à mesa do Corpo do Senhor; dêem graças a Deus; aprendam a oferecer-se a si mesmos, ao oferecer juntamente com o sacerdote, que não só pelas mãos dele, a hóstia imaculada; que, dia após dia, por Cristo mediador, progridam na unidade com Deus e entre si, para que finalmente Deus seja tudo em todos".
Meus irmãos e irmãs, é isto que os Padres Conciliares queriam. Sim, certamente, eles discutiram e votaram formas específicas de alcançar suas intenções. Mas sejamos bem claros: as reformas rituais propostas na Constituição, tais como a restauração da oração dos fiéis na Missa (n. 53), a extensão da concelebração (n. 57) ou algumas de suas regras tais como a simplificação desejada pelos artigos 34 e 50, estão todas subordinadas às intenções fundamentais dos Padres Conciliares que acabei de traçar. Elas são meios para um fim, e é o fim que devemos alcançar.
Se pretendemos caminhar rumo a uma implementação mais autêntica da Sacrosanctum Concilium, são estas metas, estes fins que devemos manter diante de nós em primeiro lugar e acima de tudo. Pode ser que, se os estudarmos com olhos limpos e com o benefício da experiências das últimas cinco décadas, vejamos algumas reformas rituais específicas e certas regras litúrgicas numa luz diferente. Se, hoje, a fim de "comunicar um vigor sempre crescente à vida cristã entre os fiéis" e "ajudar a chamar a humanidade inteira para o seio da Igreja" algumas dessas precisarem ser reconsideradas, peçamos ao Senhor que nos dê o amor, a humildade e a sabedoria para assim o fazer.
Eu levanto esta possibilidade de olhar novamente para a Constituição e para a reforma que seguiu sua promulgação porque não acho que podemos honestamente ler nem mesmo o primeiro artigo da Sacrosanctum Concilium hoje e nos contentarmos por termos alcançado suas metas.
Meus irmãos e irmãs, onde estão os fiéis de que falaram os Padres Conciliares? Muitos dos fiéis hoje são infiéis: eles não vêm mais para a liturgia. Para usar as palavras de São João Paulo II: muitos cristãos estão vivendo num estado de "apostasia silenciosa"; eles "vivem como se Deus não existisse" (Exortação Apostólica Ecclesia in Europa, 28/06/2003, 9).
Onde está a unidade que o Concílio esperou alcançar? Nós ainda não chegamos lá. Temos feito real progresso em chamar a humanidade inteira para o seio da Igreja? Eu acho que não. E já temos feito muita coisa para a liturgia!
Em meus 47 anos de vida como sacerdote e depois de mais de 36 anos de ministério episcopal, posso atestar que muitas comunidades e indivíduos católicos vivem e rezam a liturgia reformada seguindo o Concílio com fervor e alegria, derivando dela vários, se não todos, dos bens que os Padres Conciliares desejaram. Isto é um ótimo fruto do Concílio. Mas da minha experiência eu também sei - agora também através do meu serviço como Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos - que há muitas distorções da liturgia em toda a Igreja hoje, e que há muitas situações que poderiam ser melhoradas para se alcançar as metas do Concílio. Antes de eu refletir sobre possíveis melhoras, consideremos o que aconteceu em seguida à promulgação da Constituição sobre a Sagrada Liturgia.
Enquanto a obra oficial de reforma acontecia, algumas interpretações erradas muito sérias da liturgia emergiram e se enraizaram em diferentes lugares pelo mundo. Esses abusos da Sagrada Liturgia cresceram por causa de uma compreensão errônea do Concílio, resultando em celebrações litúrgicas que eram subjetivas e que eram mais focadas nos desejos da comunidade individual do que no culto sacrifical do Deus todo-poderoso. Meu predecessor como Prefeito da Congregação, o Cardeal Francis Arinze, uma vez chamou este tipo de coisa de "a Missa do faça-você-mesmo". Até São João Paulo viu a necessidade de escrever o seguinte em sua Carta Encíclica Ecclesia de Eucharistia (17/04/2003):
"A este esforço de anúncio por parte do Magistério correspondeu um crescimento interior da comunidade cristã. Não há dúvida que a reforma litúrgica do Concílio trouxe grandes vantagens para uma participação mais consciente, ativa e frutuosa dos fiéis no santo sacrifício do altar. Mais ainda, em muitos lugares, é dedicado amplo espaço à adoração do Santíssimo Sacramento, tornando-se fonte inesgotável de santidade. A devota participação dos fiéis na procissão eucarística da solenidade do Corpo e Sangue de Cristo é uma graça do Senhor que anualmente enche de alegria quantos nela participam. E mais sinais positivos de fé e de amor eucarísticos se poderiam mencionar.
A par destas luzes, não faltam sombras, infelizmente. De fato, há lugares onde se verifica um abandono quase completo do culto de adoração eucarística. Num contexto eclesial ou outro, existem abusos que contribuem para obscurecer a reta fé e a doutrina católica acerca deste admirável sacramento. Às vezes transparece uma compreensão muito redutiva do mistério eucarístico. Despojado do seu valor sacrificial, é vivido como se em nada ultrapassasse o sentido e o valor de um encontro fraterno ao redor da mesa. Além disso, a necessidade do sacerdócio ministerial, que assenta na sucessão apostólica, fica às vezes obscurecida, e a sacramentalidade da Eucaristia é reduzida à simples eficácia do anúncio. Aparecem depois, aqui e além, iniciativas ecumênicas que, embora bem intencionadas, levam a práticas na Eucaristia contrárias à disciplina que serve à Igreja para exprimir a sua fé. Como não manifestar profunda mágoa por tudo isto? A Eucaristia é um dom demasiado grande para suportar ambiguidades e reduções.
Espero que esta minha carta encíclica possa contribuir eficazmente para dissipar as sombras de doutrinas e práticas não aceitáveis, a fim de que a Eucaristia continue a resplandecer em todo o fulgor do seu mistério" (n. 10).
Havia também uma realidade pastoral aqui: se por razões boas ou não algumas pessoas poderiam ou iriam participar ou não dos ritos reformados. Elas ficaram longe, ou só participaram da liturgia não-reformada onde podiam encontrá-la, mesmo quando essa celebração não era autorizada. Desta forma a liturgia tornou-se uma expressão de divisões dentro da Igreja, mais do que uma de unidade católica. O Concílio não quis que a liturgia nos dividisse uns dos outros! São João Paulo II trabalhou para curar esta divisão, ajudados pelo Cardeal Ratzinger que, enquanto Bento XVI, buscou facilitar a reconciliação interna necessária na Igreja estabelecendo em seu Motu Proprio Summorum Pontificum (07/07/2007) que a forma mais antiga do Rito Romano está disponível sem restrição para os indivíduos e grupos que quiserem aproveitar suas riquezas. Na providência de Deus, agora é possível celebrar nossa unidade católica respeitando e até alegrando-se numa legítima diversidade de prática ritual.
Podemos ter construído uma muito nova e moderna liturgia em vernáculo, mas se não lançamos os fundamentos corretos, se nossos seminaristas e clérigos não estão "imbuídos plenamento do espírito e da virtude da liturgia" como o Concílio pediu, então eles não podem formar o povo confiado a seu cuidado. Precisamos levar as palavras do próprio Concílio muito a sério: seria "fútil" esperar por uma renovação litúrgica sem uma completa formação litúrgica. Sem esta formação essencial o clero poderia até prejudicar a fé das pessoas no mistério Eucarístico.
Não quero que pensem que estou sendo excessivamente pessimista, e digo novamente: há vários, vários fiéis leigos homens e mulheres, vários clérigos e religiosos para os quais a liturgia, tal como reformada depois do Concílio, é uma fonte de muito fruto apostólico e espiritual, pelo que agradeço a Deus todo-poderoso. Mas, pela minha breve análise até aqui, penso que vocês concordarão que podemos fazer melhor de modo que a Sagrada Liturgia realmente se torne a fonte e o cume da vida e da missão da Igreja hoje, no início do século XXI, como os Padres do Concílio tão seriamente desejaram.
À luz dos desejos fundamentais dos Padres Conciliares e das diferentes situações temos visto surgir após o Concílio, gostaria de apresentar algumas considerações práticas sobre como podemos implementar a Sacrosanctum Concilium mais fielmente hoje. Embora eu sirva como Prefeito da Congregação para o Culto Divino, faço-o com toda a humildade enquanto sacerdote e bispo, na esperança de que elas promovam reflexões e estudos maduros e uma boa prática litúrgica na Igreja.
Não será uma surpresa se eu disser que em primeiro lugar devemos examinar a qualidade e a profundidade de nossa formação litúrgica, de como imbuímos nosso clero, religiosos e fiéis leigos com o espírito e a virtude da liturgia. Muitas vezes assumimos que nossos candidatos para a ordenação ao sacerdócio ou ao diaconato permanente "sabem" o bastante sobre a liturgia. Mas o Concílio não estava insistindo sobre conhecimento aqui, embora, é claro, a Constituição tenha enfatizado a importância dos estudos litúrgicos (cf. n. 15-17). Não, a formação litúrgica que é primária e essencial é uma como que imersão na liturgia, no profundo mistério de Deus, nosso Pai amoroso. É uma questão de viver a liturgia em todas as suas riquezas, de modo que, tendo bebido profundamente de sua fonte, sempre tenhamos uma sede de seus deleites, sua ordem e beleza, seu silêncio e contemplação, sua exultação e adoração, sua habilidade de nos conectar intimamente com aquele que opera nos e através dos ritos sagrados da Igreja.
Eis por que aqueles que estão "em formação" para o ministério pastoral devem viver a liturgia tão plenamente possível em seus seminários e casas de formação. Candidatos ao diaconato permanente deveriam também ter uma imersão numa intensa vida litúrgica por um período prolongado. E, acrescento, que a plena e rica celebração do uso mais antigo do Rito Romano, o usus antiquior, possa ser uma parte importante da formação litúrgica para o clero, pois como podemos compreender ou celebrar os ritos reformados com uma hermenêutica de continuidade se nunca experimentamos a beleza da tradição litúrgica que os próprios Padres do Concílio conheceram?
Se dermos atenção a isto, se nossos novos sacerdotes e diáconos realmente tiverem sede da liturgia, eles mesmos serão capazes de formar aqueles que estão confiados aos seus cuidados - mesmo que as circunstâncias e possibilidades litúrgicas de sua missão eclesial sejam mais modestas que as do seminário ou de uma catedral. Estou ciente de vários sacerdotes em tais circunstâncias que formam seu povo no espírito e na virtude da liturgia, e cujas paróquias são exemplos de grande beleza litúrgica. Devemos lembrar que a nobre simplicidade não é a mesma coisa que um minimalismo redutivo ou um estilo vulgar e negligente. Como nosso Santo Padre, o Papa Francisco, ensina em sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: "A Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza da liturgia, que é também celebração da atividade evangelizadora e fonte dum renovado impulso para se dar" (n. 24).
Em segundo lugar, penso que é muito importante que sejamos claros sobre a natureza da participação litúrgica, da participatio actuosa para a qual chamou o Concílio. Houve muita confusão aqui em décadas recentes. O artigo 48 da Constituição afirma: "a Igreja procura (...) que os cristãos não entrem neste mistério de fé como estranhos ou espectadores mudos, mas participem na ação sagrada, consciente, ativa e piedosamente, por meio duma boa compreensão dos ritos e orações". O Concílio vê a participação como primeiramente interna, surgindo "duma boa compreensão dos ritos e orações". Os Padres chamaram os fiéis a cantar, a responder ao sacerdote, a assumir ministérios litúrgicos que são corretamente seus, certamente, mas insiste-se que tudo deve ser feito "consciente, ativa e piedosamente".
Se entendemos a prioridade de internalizar nossa participação litúrgica evitaremos o ativismo litúrgico perigoso e barulhento que tem sido tão proeminente em décadas recentes. Não vamos para a liturgia para apresentar algo, fazer coisas para os outros verem: nós vamos para estar conectados com a ação de Cristo por meio de uma internalização dos ritos, orações, sinais e símbolos litúrgicos externos. Pode ser que nós, cuja vocação é ministrar liturgicamente, precisemos lembrar disto mais do que os outros! Mas também precisamos formar os outros, particularmente nossas crianças e jovens, no verdadeiro significado da participação litúrgica, no verdadeiro jeito de rezar a liturgia.
Em terceiro lugar, tenho falado do fato de que algumas reformas introduzidas no seguimento do Concílio podem ter sido feitas juntamente com o espírito da época e que houve uma crescente quantidade de estudos críticos, por filhos e filhas fiéis da Igreja, perguntando se o que de fato foi produzido verdadeiramente implementou as metas da Constituição ou se na realidade foi além. Esta discussão às vezes apareceu sob o título de uma "reforma da reforma" e sei que o Pe. Thomas Kocik apresentou um estudo erudito sobre esta questão na conferência Sacra Liturgia em Nova Iorque há um ano atrás.
Não penso que possamos recusar a possibilidade ou o desejo de uma reforma oficial da reforma litúrgica, porque seus proponentes fazem algumas importantes reivindicações em sua tentativa de ser fiéis à insistência do Concílio, no artigo 23 da Constituição, de "conservar a sã tradição e abrir ao mesmo tempo o caminho a um progresso legítimo" e para que "não se introduzam inovações, a não ser que uma utilidade autêntica e certa da Igreja o exija, e com a preocupação de que as novas formas como que surjam a partir das já existentes".
De fato, posso dizer que quando fui recebido em audiência pelo Santo Padre em abril passado, o Papa Francisco pediu-me para estudar a questão de uma reforma da reforma e de como enriquecer as duas formas do Rito Romano. Será um trabalho delicado e peço a paciência e as orações de vocês. Mas se pretendemos implementar mais fielmente a Sacrosanctum Concilium, se pretendemos alcançar o que o Concílio desejou, esta é uma questão séria que deve ser estudada cuidadosamente e sobre a qual se deve agir com a necessária clareza e prudência.
Nós sacerdotes, nós bispos carregamos uma grande responsabilidade. Como nosso bom exemplo edifica uma boa prática litúrgica; como nossa falta de zelo ou erros fazem mal à Igreja e à sua Sagrada Liturgia!
Nós sacerdotes devemos ser adoradores em primeiro lugar e antes de tudo. Nosso povo consegue ver a diferença entre um sacerdote que celebra com fé e outro que celebra com pressa, frequentemente olhando para o relógio, quase como que a dizer que quer voltar para a televisão logo que possível! Padres, não podemos fazer nada mais importante do que celebrar os sagrados mistérios: guardemo-nos da tentação da preguiça litúrgica, porque esta é uma tentação do diabo.
Devemos lembrar que não somos os autores da liturgia, somos seus humildes ministros, sujeitos à sua disciplina e suas leis. Também somos responsáveis por formar aqueles que nos assistem em ministérios litúrgicos tanto no espírito como na virtude da liturgia e também em suas regras. Algumas vezes tenho visto sacerdotes ficarem de lado para deixar ministros extraordinários distribuirem a Sagrada Comunhão: isto está errado, é uma negação do ministério sacerdotal bem como uma clericalização dos leigos. Quando isso acontece é um sinal de que a formação aconteceu de forma muito errada e que precisa ser corrigida.
Também tenho visto sacerdotes, e bispos, paramentados para celebrar a Santa Missa, pegarem telefones e câmeras e usá-los na Sagrada Liturgia. Esta é uma prova terrível daquilo que eles entendem que estão fazendo quando colocam as vestes litúrgicas, que nos vestem como um alter Christus - e muito mais, como ipse Christus, Cristo mesmo. Fazer isto é um sacrilégio. Nenhum bispo, presbítero ou diácono vestido para o ministério litúrgico ou presente no santuário deveria tirar fotogafias, mesmo em grandes Missas concelebradas. Que os sacerdotes frequentemente façam isso em tais Missas, ou que conversem entre si e se sentem de forma casual, é um sinal, penso eu, de que precisamos repensar a conveniência delas, especialmente se levam os sacerdotes a este tipo de comportamento escandaloso que é tão indigno do mistério sendo celebrado, ou se o mero tamanho dessas concelebrações leva ao risco da profanação da Santa Eucaristia.
Quero fazer um apelo a todos os sacerdotes. Vocês podem ter lido meu artigo em L'Osservatore Romano há um ano atrás (12/06/2015) ou minha entrevista com o jornal Famille Chrétienne em maio deste ano. Em ambas as ocasiões eu disse que creio ser muito importante que retornemos o quanto antes possível para uma comum orientação, dos sacerdotes e fiéis voltados juntos na mesma direção - para o oriente ou pelo menos para a abside - para o Senhor que vem, naquelas partes dos ritos litúrgicos em que estamos nos dirigindo a Deus. Esta prática é permitida pela legislação litúrgica corrente. É perfeitamente legítima no rito moderno. De fato, penso ser isto um passo muito importante para assegurar que em nossas celebrações o Senhor esteja verdadeiramente no centro.
E assim, queridos padres, peço a vocês que implementem esta prática onde for possível, com prudência e com a necessária catequese, certamente, mas também com a confiança de um pastor de que isto é algo bom para a Igreja, algo bom para o nosso povo. O próprio juízo pastoral de vocês determinará como e quando isto será possível, mas talvez iniciar no primeiro domingo do Advento deste ano, quando esperamos "o Senhor que virá" e "que não tardará" (cf. Introito, Missa da Quarta-feira da Primeira Semana do Advento) possa ser um bom tempo. Caros padres, devemos ouvir novamente o lamento de Deus proclamado pelo profeto Jeremias: "eles voltaram suas costas para mim" (2,27). Voltemo-nos novamente para o Senhor!
Também gostaria de fazer um apelo aos meus irmãos bispos: por favor, conduzam seus sacerdotes e seu povo rumo ao Senhor desta forma, particularmente em grande celebrações em suas dioceses e na catedral. Por favor, formem seus seminaristas na realidade de que não somos chamados para o sacerdócio para estarmos nós mesmos no centro do culto litúrgico, mas para conduzir os fiéis até Cristo, como companheiros de adoração. Por favor, facilitem esta simples e profunda reforma em suas dioceses, suas catedrais, suas paróquias e seus seminários.
Nós bispos temos uma grande responsabilidade, e um dia teremos que responder ao Senhor por nossa administração. Não somos os donos de nada! Como São Paulo ensina, somos meramente "os servos de Cristo e os administradores dos mistérios de Deus" (1Cor 4,1). Somos responsáveis por assegurar que as realidades sagradas da liturgia sejam respeitadas em nossas dioceses e que nossos sacerdotes e diáconos não observem apenas as leis litúrgicas, mas conheçam o espírito e a virtude da liturgia, de onde elas emergem. Fui muito estimulado a ler a apresentação sobre "O Bispo: Governador, Promotor e Guardião da Vida Litúrgica da Diocese", feita pelo Arcebispo Alexander Sample de Portland, Oregon, Estados Unidos da América, para a conferência Sacra Liturgia de 2013, e fraternalmente estimulo meus irmãos bispos a estudarem suas considerações cuidadosamente.
Neste ponto, repito o que eu disse noutra ocasião, que o Papa Francisco pediu-me para continuar a obra litúrgica iniciada pelo Papa Bento (cf. mensagem para o Sacra Liturgia USA 2015, Nova Iorque). Só porque temos um novo papa não significa que a visão de seu predecessor agora é inválida. Pelo contrário, como sabemos, nosso Santo Padre, o Papa Francisco, tem o maior respeito pela visão litúrgica e pelas medidas que o Papa Bento implementou em total fidelidade às intenções e metas dos Padres Conciliares.
Antes de concluir, permitam-me por favor mencionar algumas outras formas que também podem contribuir para uma implementação mais fiel da Sacrosanctum Concilium. Uma delas é que devemos cantar a liturgia, devemos cantar os textos litúrgicos, respeitando as tradições litúrgicas da Igreja e regozijando no tesouro da música sacra que é nosso, mais especialmente aquela música própria do Rito Romano, o canto gregoriano. Devemos cantar a música litúrgica sagrada, não meramente música religiosa, ou pior, canções profanas.
Devemos fazer o justo equilíbrio entre as línguas vernáculas e o uso do latim na liturgia. O Concílio nunca quis que o Rito Romano fosse exclusivamente celebrado em vernáculo. Mas quis permitir um aumento do seu uso, particularmente para as leituras. Hoje seria possível, especialmente com os modernos meios de impressão, facilitar a compreensão de todos quando o latim for usado, talvez na Liturgia Eucarística, e isto é particularmente adequado para reuniões internacionais onde o vernáculo local não é compreendido por muitos. E naturalmente, quando o vernáculo for usado, ele deve ser uma tradução fiel do original latino, como recentemente afirmou para mim o Papa Francisco.


Tradução por Luís Augusto Rodrigues Domingues - membro da ARS

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