Catena Aurea: Evangelho do VI Domingo da Páscoa (João 15,9-17)
Como o Pai me ama, assim também eu vos amo. Perseverai no meu amor.
Se guardardes os meus mandamentos, sereis constantes no meu amor, como também eu guardei os mandamentos de meu Pai e persisto no seu amor.
Disse-vos essas coisas para que a minha alegria esteja em vós, e a vossa alegria seja completa.
Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, como eu vos amo.
Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos.
Vós sois meus amigos, se fazeis o que vos mando.
Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz seu senhor. Mas chamei-vos amigos, pois vos dei a conhecer tudo quanto ouvi de meu Pai.
Não fostes vós que me escolhestes, mas eu vos escolhi e vos constituí para que vades e produzais fruto, e o vosso fruto permaneça. Eu assim vos constituí, a fim de que tudo quanto pedirdes ao Pai em meu nome, ele vos conceda.
O que vos mando é que vos ameis uns aos outros.
Crisóstomo ut supra.
Se, pois, o Pai vos ama, confiai; se é para a glória do Pai, produzi frutos. Depois, para animar-lhes a diligência, acrescenta: “Perseverai no meu amor”. Para dizer-lhes como se há de fazer isto, explica: “Se guardardes os meus mandamentos”.
Santo Agostinho ut supra.
Quem duvida de que o amor precede a guarda dos mandamentos? Por que aquele que não ama não tem a base necessária para obedecer aos preceitos. E isto se diz não para mostra de onde nasce o amor, mas para mostrar como este se manifesta, a fim de que ninguém se engane dizendo que O ama sem observar os seus mandamentos. Ainda que, ao dizer “Permanecei em meu amor”, não se explique de que tipo de amor se trata, se é o que devemos ter por Ele ou se é o que Ele tem por nós, conhece-se a espécie de amor por suas palavras anteriores : “Eu vos amei”. Em seguida, diz “permanecei no meu amor”, qual seja, no amor que o Senhor a eles dedicava. Que outra coisa, então, significa “Permanecei em meu amor”, senão “Permanecei em minha graça”? E que outra coisa nos mostra quando diz “Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor”, senão o sinal pelo qual saberemos que o amamos, qual seja, quando guardamos seus mandamentos?
Nós não os observamos para que Ele nos ame; antes, sem seu amor não poderíamos observá-los. Esta é a graça visível para os humildes e oculta aos soberbos. Mas porque continua “como também eu guardei os mandamentos de meu Pai e persisto no seu amor”? Com efeito, aqui o amor do Pai é aquele que o Pai tem pelo Filho. E por isto também podemos entender que também é graça o amor do Pai para com o Filho assim como o é o do Filho para conosco? Obviamente que não, pois nós somos filhos por graça e não por natureza e o Filho o é por natureza, não por graça. Pode isso se referir ao Filho enquanto homem? Certamente, porque ao dizer “como o Pai me ama, assim também eu vos amo”, demonstra a graça do mediador. Mas Cristo é mediador entre Deus e os homens, não enquanto Cristo é Deus, mas enquanto é homem. Também se pode dizer com justiça que, embora a natureza humana não pertence à natureza de Deus, ela pertence à natureza do Filho de Deus por meio da graça, que não tem outra maior nem igual. Com efeito, nenhum mérito do homem precedeu à graça da Encarnação, mas pelo contrário, todo o mérito do homem iniciou-se a partir dela.
Alcuíno.
A qual mandamento o Senhor se refere, diz o Apóstolo (EF 2, 8): “Cristo se fez obediente até a morte, e morte de cruz”.
Crisóstomo In Ioannem hom., 76.
Como, depois, sua alegria seria interrompida pela futura paixão e ofensas, prossegue: “Disse-vos essas coisas para que minha alegria esteja em vós”, como se dissesse : ainda que a tristeza venha, eu a destruirei para convertê-la em júbilo.
Santo Agostinho In Ioannem tract., 83.
Que alegria é essa que Cristo inspira em nós, senão deixar-nos recebê-lo? E que gozo será esse que conseguimos, senão termos parte com Ele? Já Ele tinha alegria perfeita quando, pela presciência, predestinando-nos, se alegrava. Mas essa alegria ainda não estava em nós, porque ainda não existíamos. Começou a existir em nós chamou. Porém, com propriedade, podemos chamar nossa essa alegria, mediante a qual seremos bem-aventurados e, iniciada pela fé dos que renascem, chegará à perfeição quando alcançarmos o prêmio da ressurreição.
Teofilacto.
Como havia dito “Se guardardes meus mandamentos”, explica quais são estes mandamentos: “amai-vos uns aos outros”
São Gregório In Evang hom. 27.
Sendo todas as palavras do Senhor cheias de preceitos, por que faz do amor um mandamento especial, senão porque no amor radica todo mandamento? Não podem todos os preceitos reduzirem-se a um, supondo-se que todos se baseiam na caridade? Por que assim como de um só tronco nascem muitos ramos, assim também muitas virtudes derivam da caridade. E não viceja o ramo das boas obras se não estiver radicado no tronco da caridade. Os preceitos do Senhor são muitos, enquanto à diversidade das obras que prescrevem, mas todos se unificam em um só tronco, a caridade.
Santo Agostinho In Ioannem tract., 83.
Onde está a caridade, o que pode faltar? Onde ela não existe, que proveito pode haver? Mas este amor deve se distinguir daquele que os homens professam enquanto homens. Por isso diz “como eu vos amo”. Para que nos amou o Senhor, senão para que pudéssemos reinar com Ele? Amemo-nos mutuamente também com este desígnio, distinguindo nosso amor do amor dos que não se amam para que Deus seja amado. Estes não se amam verdadeiramente; mas, ao contrário, aqueles, cujo amor busca o amor de Deus, amam-se com verdade.
São Gregório ut supra.
A prova da verdadeira caridade consiste, principalmente, em que se ame, inclusive, os inimigos, porque a Verdade padeceu até o suplício da cruz. Ali professou seu amor aos perseguidores, dizendo (Lc 23, 34): “Pai, perdoa-lhes, por que não sabem o que fazem” e este amor chega ao ápice quando acrescenta: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos”, para ensinar-nos que a sanha de nossos inimigos não só pode se converter em nosso proveito, mas que aqueles também devem-se reputar como amigos.
Santo Agostinho In Ioannem tract., 84.
Como antes havia dito “ Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, como eu vos amo”, é lógico o que o mesmo S. João diz em sua epístola: “Assim como Cristo deu sua vida por nós, assim também nós devemos dá-la por nossos irmãos” (1Jo 3,16). Isto fizeram os mártires com fervoroso amor e por isto os comemoramos no altar, não para pedir por eles, mas para que eles peçam por nós a fim de que sigamos suas pegadas. E, ao apresentarem assim a seus irmãos, não fizeram outra coisa que não manifestar as graças que haviam recebido no altar.
São Gregório ut supra.
Quem não dará a seu irmão a túnica em tempo de paz, e a vida por ele em tempo de perseguição? Em tempos de bonança, alimente-se a virtude da caridade por meio da misericórdia, para que esta seja invencível em tempos de borrasca.
Santo Agostinho De Trin. Lib. 88.
Com o mesmo amor amamos a Deus e aos homens, mas amamos a Deus por Deus somente e amamos a nós mesmos e ao próximo por Deus. E estando a lei totalmente nos dois preceitos da caridade (o amor a Deus e ao próximo), não é sem fundamento que a Escritura costuma, em muitos lugares, pôr um em lugar do outro. Porque é lógico que quem ama a Deus, faça o que Deus manda, e assim ame ao próximo, porque Deus o manda. Por isto continua: “Vós sois meus amigos, se fazeis o que vos mando”.
São Gregório Moralium 27,12.
O amigo é como o guardião da alma e por tal razão se chama amigo de Deus aquele que cumpre sua vontade guardando os preceitos.
Santo Agostinho In Ioannem tract., 80.
Grande mercê! Não podendo ser bom um servo que não obedece os preceitos de seu senhor, aqui Cristo dá a conhecer pelo nome de amigos aos que se fizeram dignos de ser bom servos. Porque pode ser servo e amigo aquele que é bom servo. Para que entendamos como é servo e bom amigo aquele que é bom servo, o Senhor explica, dizendo: “Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz seu senhor, mas chamei-vos amigos,”. Já não mais seremos servos quando formos bons servos? Acaso o Senhor não confia seus segredos ao servo bom e provado? É que há dois temores e há também duas servidões: há um temor que o amor perfeito expele fora e com o qual sai juntamente a servidão e há outro mais honesto, que permanece eternamente. À primeira espécie de servidão se referia o Senhor quando disse “Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz seu senhor, mas chamei-vos amigos”. Não fala aqui daquele servo temoroso e honesto de quem São Mateus diz “muito bem, servo bom e fiel; já que foste fiel no pouco, eu te confiarei muito. Vem regozijar-te com teu senhor”, mas daquele, dominado pelo temor servil, ao qual S. João se referiu em outro lugar “ o escravo não fica na casa para sempre, mas o filho sim, fica para sempre”. Porque, se nos deu a liberdade de fazer-nos filhos de Deus, sejamos filhos, não escravos, para que de um modo admirável nós que somos servos possamos deixar de sê-lo. E isso é Deus quem o faz. Isto ignora aquele servo que não confessa que quem tudo faz é seu Senhor e, quando faz algo de bom, logo se orgulha como se fosse obra sua e atribui a glória a si e não a Deus. E prossegue: “Mas vos chamo amigos, pois vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai”.
Teofilacto.
Como se dissesse: o servo desconhece os desígnios de seu senhor, porém a vós, a quem trato como agimos, comuniquei meus segredos.
Santo Agostinho In Ioannem tract., 85.
Como se deve compreender que Ele manifestou aos discípulos tudo o que ouviu do Pai? Calando tudo aquilo que sabia que os discípulos não compreenderiam, mas descobrindo-lhes tudo o que cabe na plenitude da ciência, da qual diz o Apóstolo aos Coríntios: “Hoje vemos como por um espelho, confusamente; mas então veremos face a face. Hoje conheço em parte; mas então conhecerei totalmente, como eu sou conhecido”. Porque assim como esperamos a imortalidade do corpo, assim também devemos esperar o conhecimento futuro de tudo o que o Unigênito ouviu do Pai.
São Gregório In Evang hom 27.
Tudo o que ouviu de seu Pai e quis revelar a seus servos, são os gozos da caridade interior e as festas da pátria celeste que diariamente sentem antecipadamente as almas em seus enlevos de amor, pois quando amamos aquilo que do céu nos é dito, conhecemos já o que amamos, porque o conhecimento é amor. Tudo, pois, havia revelado aos apóstolos, porque, livres dos desejos terrenos, ardiam em chamas de amor divino.
Crisóstomo In Ioannem hom., 76.
Enfim lhes fala de tudo o que lhes convinha saber, dizendo que não fala nada que não seja do Pai.
São Gregório ut supra.
Mas todo aquele que tenha a honra de ser chamado amigo de Deus, não atribua a méritos próprios a dignidade que vê em si. Por isto diz: “ Não fostes vós que me escolhestes, mas eu vos escolhi”.
Santo Agostinho In Ioannem tract., 86.
Há aqui uma graça inefável! Que éramos nós quando ainda não éramos cristãos, senão uns perversos e perdidos? Pois nem ainda havíamos crido n'Ele para que nos escolhesse; porque se escolheu aos crentes, Ele os fez crente para escolhê-los. Não há lugar aqui para aquela vã argumentação de que Deus nos escolheu antes da criação, porque previu, não que nos faria bons, mas que nós seríamos bons por nós mesmos. E, certamente, se Deus nos tivesse escolhido por que previu que seríamos bons, também teria previso que nós O havíamos de escolher primeiro. Porque esta é a única maneira pela qual poderemos ser bons, a não ser que seja chamado bom aquilo que escolhe o bom. Que é, pois, o que escolheu dentre aquilo que não era bom? Não basta que digas “fui escolhido porque já acreditava”, por que se crias n'Ele, já O havias escolhido. Nem tampouco digas “antes de crer já praticava boas obras e por isso fui escolhido”, porque, que obra pode ser boa antes de se ter fé? Que deveremos dizer, então, senão que éramos maus e fomos escolhidos para que fôssemos bons por meio da graça daquele que nos escolheu.
Santo Agostinho De praedest Sanct cap. 17.
Foram, pois, escolhidos antes da criação do mundo, por ato de predestinação cuja execução Deus previu que ocorreria mais adiante, aqueles que foram chamados do mundo por aquela vocação que Deus predestinou e cumpriu. Porque aqueles a que predestinou a aqueles amou.
Santo Agostinho In Ioannem tract., 83.
E vede como não escolheu aos bons, mas aos que escolheu fez bons. E continua “vos constituí para que vades e produzais fruto”. E este é o fruto do qual já havia falado “Sem mim, nada podeis fazer”. E Ele próprio é o caminho pelo qual devemos ir.
São Gregório ut supra.
Eu vos constitui e vos plantei na graça para que vades (querendo, pois a alma marcha pelo querer) e recolhais frutos pelo trabalho. Indica de que fruto se trata quando diz: “e vosso fruto permaneça”. Porque tudo que trabalhamos neste século, mal dura até a morte que, ao chegar, corta o fruto do nosso trabalho. Mas o que se faz pela vida eterna, dura ainda depois da morte, quando então começa a aparecer, quando não mais se vêem as obras da carne. Produzamos, pois, frutos tais que permaneçam e que a morte, que a tudo põe fim, seja o princípio de sua duração.
Santo Agostinho ut supra.
Nosso fruto é o amor que agora vive no desejo, mas não na satisfação; e por este mesmo desejo nos dará o Pai, quando pedirmos em nome de seu Filho Unigênito, por isso segue, “a fim de que tudo quanto pedirdes ao Pai em meu nome, ele vos conceda”. Nós pedimos em nome do Salvado isto que pertence à ordem da salvação.
Santo Agostinho In Ioannem tract., 86.
Havia dito o Senhor: “vos constituí para que vades e produzais fruto”. Nosso fruto é a caridade e o mandamento deste fruto nos diz: “Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, como eu vos amo”. Por isso, disse o Apóstolo: “o fruto do espírito é a caridade” (Gal 5, 22) e tudo o mais se apresenta como conseqüência desse princípio. Com razão, pois, recomenda o amor como a única virtude, sem o qual não se pode produzir outros bens e o qual não se pode adquirir sem as demais obras pelas quais o homem se faz bom.
Tradução: Edilberto Alves - Membro da ARS
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