A interpretação do Concílio e a renovação da Congr. para o Culto Divino
Pax et bonum!
Há não muitos dias, o sub-secretário da Congregação para o Culto Divino, o Mons. Juan Miguel Ferrer Grenesche, participou de uma Conferência sobre canto gregoriano, na qual falou amplamente da interpretação do Concílio Vaticano II, dos verdadeiros inimigos da dita assembleia conciliar, das causas da crise pós-conciliar e da secularização intra-eclesial, assim como também dos desafios que seu dicastério tem adiante, a partir do Motu proprio “Quærit semper”, de Bento XVI, que pediu que a Congregação se dedicasse principalmente à promoção da Sagrada Liturgia.
Segue uma tradução nossa que, assim como a versão espanhola, não é integral, embora seja suficiente para nosso intento.
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Mons. Juan Miguel celebrando na Forma Extraordinária do Rito Romano durante a JMJ de 2011, em Madri, na Espanha |
Mas isto é realmente uma novidade? Na verdade, não. Esta solicitude é, de fato, manifestação de um interesse natural e lógico por parte dos supremos pastores da Igreja, que se fez bem mais urgente quando, transcorrido um lapso razoável de tempo, fez-se possível fazer um balanço de tal recepção, em cujo sulco Bento XVI prossegue o exercício de condução do arado apostólico. João Paulo I, como é evidente pelo próprio nome escolhido por ele e inspirado nos seus dois últimos predecessores – aqueles que haviam convocado e concluído, respectivamente, o Concílio -, já tinha tomado para si tal objetivo, apesar de que a brevidade de seu pontificado não lhe concedeu tempo para prosseguir amplamente com tal compromisso pastoral. E João Paulo II não se limitou, de fato, somente a recolher o testemunho do nome de seu predecessor, mas, sobretudo a partir do Sínodo extraordinário de 1985, 20 anos depois do Concílio, assumiu o objetivo prioritário de assegurar uma recepção autêntica do Concílio Vaticano II.
A nomeação, por parte de João Paulo II, do teólogo Cardeal Ratzinger como cabeça da Congregação para Doutrina da Fé tem muito a ver com tal desafio pastoral. Durante sua ação como chefe da Congregação, Ratzinger revelou e confirmou com seus feitos até que ponto estava convencido de que a interpretação e recepção autênticas do Concílio estão estreitamente vinculadas à assimilação da continuidade no que diz respeito a todo o Magistério anterior da Igreja, o que ele define como “hermenêutica da continuidade”, frente a uma bastante frequente “hermenêutica da ruptura”, como chave hermenêutica dos documentos conciliares. Serão os documentos sobre a Teologia da libertação ("De theologia liberationis", de 6 de agosto de 1984: AAS 76 [1984], pp. 876-909) e a declaração “Dominus Iesus”, de 6 de agosto de 2000 sobre a unicidade da salvação ("Notitiæ" 36 [2000], pp. 408-437) as peças mais explícitas para mostrar tal impostação. Corresponde, sem dúvida, ao Catecismo da Igreja Católica (1992 e 1997) o papel de documento-chave e, neste sentido, destinado a ter e a exercer o maior peso doutrinal e a suscitar as mais amplas repercussões.
No livro-entrevista “A fé em Crise? O Cardeal Ratzinger se interroga” (Ratzinger-Messori, 1985), o prefeito da Congregação para Doutrina da Fé, ao preparar o Sínodo extraordinário, já tocava nos pontos centrais, assinalando como se fazia particularmente urgente a correta, isto é, autêntica, releitura da extraordinária riqueza do ensinamento conciliar.
Cada Concílio, em matéria de definições ou afirmações de fé, está sujeito aos limites do humano e do contingente. Nem todo ensinamento do Vaticano II pode, portanto, nem pretende, ter o mesmo valor ou a mesma validez com o passar dos anos. É, portanto, absolutamente legítimo ler os textos com sentido crítico, embora a garantia de uma correta ação pastoral, bem mais além de qualquer lícito juízo pessoal ou debate acadêmico, garanta sua “obediência pastoral” ao Papa e ao Colégio Episcopal reunido em comunhão com ele, isto é, com a Tradição viva da Igreja. E para ser mais exatos, o ensinamento dos Papas do pós-Concílio e o fruto dos trabalhos dos diversos Sínodos celebrados no curso dos últimos cinquenta anos colocam-nos frente à certeza de que o Magistério do Concílio Vaticano II continua sendo, em sua organicidade, válido, oportuno e necessário para a Igreja atual.
Quem são, portanto, os inimigos da doutrina e da renovação promovida na Igreja pelo Concílio Vaticano II? De fato, a resposta mais clara e imediata pareceria ser: aqueles que, desde o princípio, o têm rechaçado, considerando seu ensinamento inoportuno e imprudente e, ainda mais, incongruente e contraditório com o ensinamento e a disciplina sempre vigentes. Por trás desta posição se insinua, de fato, um juízo – na minha opinião – extremadamente genérico e excessivamente rigorista, que não se pode admitir sem pôr seriamente em perigo as verdades da assistência do Espírito e da promessa da Providência, assim como aquelas da autoridade e da infalibilidade de Pedro e seus sucessores.
Sem dúvida, a reivindicação da faculdade de execução de uma leitura crítica sobre alguns pontos concretos dos documentos conciliares – como já mencionei anteriormente – é plenamente compatível com a noção de obediente aceitação do ensinamento conciliar, tal como é proposto e proclamado pelos legítimos Pastores da Igreja. Portanto, sustento com plena convicção que os autênticos e mais concretos inimigos do ensinamento do Vaticano II são aqueles que, tendo-o sempre nos lábios ou nas mãos como uma arma pronta para atirar – se bem que referindo-se mais a seu “espírito” que a seu efetivo e comprovado ensinamento e sem perder a ocasião, provavelmente para reforçar tal presumido “espírito”, de reiterar que nos encontramos já, na verdade, frente à necessidade de um novo Concílio –, interpretam-no como antítese ou ruptura do ensinamento e da disciplina precedentes (tese). Eles afirmam, além disso, a ilusória pretensão, ainda que astuta, de que tal manipulação ou leitura “antitética” do Concilio permite voltar às fontes de um cristianismo autêntico e primitivo, capaz de envolver mediante sua compreensão genial da realidade e não em virtude dos efeitos de nossa inserção, determinada pela obediência da fé, na linha vital e vitalizante da tradição eclesial. São eles, “neo-gnósticos” no âmbito doutrinal e “neo-arqueologistas” no âmbito litúrgico, os mais perigosos inimigos do Concílio.
Voltando, portanto, às preocupações do Magistério pós-conciliar, é necessário inevitavelmente assinalar a importância dada ao dramático fenômeno do ateísmo em massa, sobretudo prático, porém, em muitos sentidos, teórico ou doutrinal, em seu sutil laicismo militante cada vez mais inflamado.
Logo após as duas últimas guerras mundiais, no preocupante clima da assim chamada guerra fria, afirmaram-se no mundo algumas poderosas tendências de pensamento: por um lado, um realismo materialista privado de esperança, conhecido como existencialismo ateu e centrado na noção sartreana de “náusea”, e por outro, a autoprojeção consciente de uma esperança intra-mundana transmitida por utopías políticas, como o marxismo, o hedonismo, declinadas nas diversas modalidades do liberalismo radical ético e econômico.
A conclusão do Concílio, e sobretudo sua primeira recepção e aplicação, tem lugar neste específico clima cultural, prolongando-se, com diversas modalidades, até nossos dias. A chave de compreensão da leitura antitética do Concílio está em identificar até que ponto, para alguns, as ideologias dominantes, mais que a tradição da Igreja, têm constituído a chave hermenêutica para a interpretação dos documentos conciliares.
Qual é a causa determinante de tudo isto?
Provavelmente, o desejo inquieto de novidades exerceu seu peso sobre alguns, por falta de uma formação séria e convincente. Creio, sem dúvida, que para a maior parte se tratou de uma busca de respostas a um problema real e urgente, se bem que – dizendo-o em termos emprestados da medicina – através de um diagnóstico equivocado e de uma terapia contraindicada. Tem-se sustentado com autoridade que entre os motivos do distanciamento do homem contemporâneo em relação ao cristianismo estão a divisão ou o excesso de separacionismo com que se tem explicado e vivido a ordem natural e a sobrenatural. O remédio consistia em evidenciar a proximidade entre os dois planos e sua “continuidade”. Deste modo, o homem contemporâneo teria visto a proximidade da mensagem cristã e sua proposta de vida com suas próprias aspirações e projetos. Contudo, a proposta, pelo contrário, traduziu-se rapidamente numa “secularização” da vida e do ensinamento cristão. O que buscava, portanto, evitar o avanço do ateísmo em massa, terminou por alimentar o secularismo na própria Igreja; e o que os adversários consideravam só poder introduzir com lentidão e dificuldade no povo cristão e frear nas terras de missão, terminou difundindo-se com inusitada rapidez, precisamente através do ensino teológico, da pregação, da catequese, da missão e inclusive da liturgia, secularizando-as. Uma problemática ainda persistente e cujos efeitos nocivos ainda hoje sofremos.
Neste contexto deve-se entender o chamado do Sínodo de 1985 para que a Igreja vivesse da Palavra de Deus e da Liturgia e, partindo de uma teologia da Cruz, se esforçasse com dedicação, firmemente unida na Comunhão, no seu essencial compromisso missionário. Daqui a insistência na importância de recuperar na Liturgia o sentido do sagrado, isto é, o primado de Deus e de sua ação, e uma catequese mistagógica, ou seja, inspirada e nutrida pela experiência sobrenatural vivida na Liturgia através da Palavra e dos sinais eficazes eclesialmente transmitidos, compreendidos e vitalizados.
No campo litúrgico, a Carta Apostólica “Vicesimus quintus annus” (dezembro de 1988) e a II parte do Catecismo da Igreja Católica (outubro de 1992 e agosto de 1997), intitulada “A celebração do Mistério cristão”, marcam a resposta do Magistério a respeito e a correta recepção e interpretação do Concílio. A possibilidade concreta de afrontar e oferecer uma resposta adequada e inteligível ao ser humano contemporâneo passa exclusivamente através da reapropriação de uma identidade cristã clara e bem definida, que nasça e se alimente da fonte da Liturgia e que não ofereça nem ouro, nem prata, mas tão somente o que possui, a salvação de Jesus Cristo, único Redentor da humanidade (cf. At 1, 6), dom imprevisível, mas que para quem quer que o receba se torna resposta imprescindível e suprema a todas as suas angústias mais profundas.
Como no Concílio, também no Magistério pós-conciliar, e em particular no de Bento XVI, a Sagrada Liturgia – divina Liturgia, como se diz no Oriente – assume uma importância fundamental. A Liturgia, de fato, “opus Dei”, estimula os crentes a uma experiência vital de Deus e de sua ação através da experiência da Fé. A Liturgia é, ademais, operante na Igreja, em cujo seio nascem as “testemunhas” (mártires) do Evangelho. Além do mais, na perspectiva da nova evangelização, a Liturgia mostra com clareza e força como deve ser considerada fonte e cume da vida e da ação da Igreja ("Sacrosanctum Concilium", n. 10). Enquanto cume, está chamada a orientar e precisar o objetivo da ação pastoral da Igreja, que é a santificação da humanidade, a “glória de Deus” e a vida eterna; enquanto fonte, faz compreender a centralidade e o primado da ação de Deus e o valor que a criação possui na cooperação e participação na ação divina, revelando deste modo suas dimensões cósmica, social e eclesial, juntamente com seu valor apologético em vista da apresentação das “realidades” dos conteúdos da fé cristã ao homem contemporâneo, tão dependente do “concreto” na linha do positivismo científico.
A partir desta perspectiva, assume uma grande importância o cuidado da participação na Liturgia por parte dos fiéis (cfr. "Sacrosanctum Concilium", n. 14, e para as implicações práticas nn. 15-20). Tal insistência do Concílio é amplamente proposta no Catecismo da Igreja Católica (n. 1140, lido à luz da inteira seção nn. 1136-1186, e no contexto mais amplo do capítulo II, nn. 1135-1206, da I seção da II parte). Bento XVI volta a propor o mesmo tema fundamental na expressão “ars celebrandi”, que aparece na Exortação Apostólica Pós-sinodal “Sacramentum Caritatis”, nos nn. 38.42, que se deve ler em relação com os nn. 52-63 do mesmo documento, pondo em evidência a extrema importância e interesse que o tema assume na Igreja atual.
Neste contexto se deve entender o Motu Proprio “Quærit semper”, do passado mês de agosto (2011), com o qual o Santo Padre Bento XVI desejou ulteriormente concentrar o trabalho da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos em suas competências propriamente litúrgicas, afirmando:
“Nas circunstâncias atuais, resulta conveniente que a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos se dedique, principalmente, a dar novo impulso à promoção da Sacra Liturgia na Igreja, segundo a renovação desejada pelo Concílio Vaticano II a partir da Constituição Sacrosanctum Concilium”.
As palavras do Santo Padre são muito precisas:
1. Ele se refere às “circunstâncias atuais”, ou seja, ao amplo contexto cultural e eclesial a que fizemos referência;
2. Diz “principalmente”, enquanto a Congregação mantém em si todas as outras competências, também de disciplina sacramental, se bem que neste âmbito tenha cedido amplo espaço ao Tribunal da Rota Romana;
3. Fala de “novo impulso” e cita expressamente o Concílio Vaticano II e a “Sacrosanctum Concilium”, pondo em evidência desse modo como os novos objetivos da Congregação não comportam nenhuma dicotomia com a ação do Magistério precedente, e em particular com os ensinamentos conciliares retamente entendidos;
4. Usa o vocábulo “renovação”, e não “reforma”, entendendo-o segundo o ensinado pelo beato João Paulo II na Carta Apostólica "Vicesimus quintus annus" (nn. 3-4, e em particular o n. 14), na qual afirmava – citando “Dominicæ Cenæ”, n. 9 – que “é sobremaneira conveniente e necessário mesmo, portanto, que se procure perfazer uma renovada e intensa educação, tendo em vista descobrir todas as riquezas que encerra a nova Liturgia” e que, ao mesmo tempo, “não se pode continuar falando de mudanças como no tempo da publicação do Documento [isto é, a 'Sacrosanctum Concilium'], mas sim de um aprofundamento cada vez mais intenso da Liturgia da Igreja, celebrada segundo os livros vigentes e vivida, sobretudo, como um fato de ordem espiritual” ("Vicesimus quintus annus", n. 14).
Neste sentido, o trabalho da Congregação deve, neste momento, ter como sua prioridade fazer que o povo de Deus, que vive a liturgia na Forma Ordinária do Rito Romano, integre cada vez mais a própria participação plena e frutuosa nas celebrações, com uma intensa educação e com sua natureza de um fato de ordem espiritual. Isto se traduz em uma particular atenção em assegurar em seu interior um correto cuidado da “ars celebrandi”.
Assim também, deverão ter bem presentes os parágrafos reservados a este tema pelo Santo Padre na II parte da “Sacramentum Caritatis”, ali onde se fala de “ars celebrandi” (nn. 38-42) e de "actuosa participatio" (nn. 52-63):
n. 39: O bispo, liturgista por excelência. Isto implica uma atenção particular à formação, à consulta e ao apoio por parte da Congregação em relação ao compromisso de cada bispo e das Conferências episcopais em matéria litúrgica.
n. 40: O respeito pelos livros litúrgicos e pela riqueza dos sinais. Isto compreende uma primeira fase de renovado empenho no tratamento das “edições típicas” e, num segundo momento, de garantia no que diz respeito à sua correta tradução e a seu correto uso, junto a um esforço tendente a pôr adequadamente em sentido, luz e valor, os sinais litúrgicos segundo as rubricas, as Prænotanda dos diversos livros litúrgicos e o “Cæremoniale Episcoporum” em sua qualidade de livro que, assumindo a liturgia episcopal como modelo, constitui a expressão mais completa da Liturgia romana.
n. 41: Arte ao serviço da celebração. Isto exige que a Congregação se dedique com um empenho cada vez maior à definição e à promoção daqueles aspectos que devem ser entendidos como parte integrante da Liturgia, como o lugar, o espaço, os utensílios e os paramentos para a celebração.
n. 42: O canto litúrgico. Uma necessária e particular atenção deve reservar-se à música e ao canto para a liturgia, parte privilegiada da arte litúrgica, na óptica de uma recuperação da especial atenção que ela merece por parte da Congregação.
nn. 52-63: Participação ativa. Esta seção do documento pontifício obriga a Congregação, em acordo com os outros Dicastérios da Cúria Romana, a prover, garantindo, uma correta formação do clero e dos fiéis no campo litúrgico, como elemento fundamental para uma verdadeira vida de cristãos e ao desenvolvimento da própria vocação específica na Igreja. Ao mesmo tempo, implica uma consideração cada vez mais profunda dos temas urgentes da tradução e, em particular, da inculturação, partindo da perspectiva teológica e pastoral de facilitar a participação na liturgia, mais que de qualquer consideração de natureza sócio-política ou fundamentalmente intelectual, como aquela do “direito dos povos”. Ao mesmo tempo, a prioridade assinalada à pastoral litúrgica induz, sempre numa perspectiva inter-dicasterial, a ter presentes os importantes desafios tanto ecumênicos (n. 56), como no campo da pastoral e da caridade (n. 56) e da pastoral em geral (nn. 57 e 61-63).
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Original em italiano:
http://chiesa.espresso.repubblica.it/articolo/1350250
http://chiesa.espresso.repubblica.it/articolo/1350250
Tradução para o espanhol:
http://la-buhardilla-de-jeronimo.blogspot.com.br/2012/05/la-interpretacion-del-concilio-y-la.html
Tradução por Luís Augusto - membro da ARS
http://la-buhardilla-de-jeronimo.blogspot.com.br/2012/05/la-interpretacion-del-concilio-y-la.html
Tradução por Luís Augusto - membro da ARS
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