A Teologia da Liturgia, por Card. Ratzinger - Parte II

Pax et bonum!

Segue a segunda parte da conferência sobre Teologia Litúrgica, dada pelo Cardeal Joseph Ratzinger nas famosas Journees Liturgiques de Fontgombault, na França, em 2001. O texto será disponibilizado, dentro de alguns dias, em PDF e na íntegra, após a postagem com a última parte.

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2. Os princípios da pesquisa teológica

Voltemos para a questão fundamental: é correto descrever a liturgia como um sacrifício divino, ou isto se trata de uma impiedade detestável? Nesta discussão, deve-se primeiramente estabelecer os pressupostos principais que, em todo caso, determinam a leitura da Escritura, e assim as conclusões que se tiram dela. Para o cristão católico, duas linhas de orientação hermenêutica essenciais se afirmam aqui. A primeira: confiamos nas Escrituras e nela nos baseamos, não em reconstruções hipotéticas que vão além dela e, de acordo com o seu próprio gosto, refazem uma história em que a ideia presunçosa do nosso saber o que pode ou não ser atribuído a Jesus tem um papel fundamental; o qual, é claro, significa atribuir a ele apenas o que algum acadêmico moderno se contenta em atribuir a um homem pertencente a uma época que o próprio acadêmico reconstruiu.

A segunda é que lemos a Escritura na comunidade viva da Igreja e, portanto, na base de decisões fundamentais que lançaram os alicerces da Igreja, graças às quais ela, a Escritura, tornou-se historicamente eficaz. Não se deve separar o texto deste vivo contexto. Neste sentido, a Escritura e a Tradição formam um todo inseparável, e é isto que Lutero, na aurora do despertar da consciência histórica, não podia enxergar. Ele acreditou que um texto só poderia ter um significado, mas esta univocidade não existe, e a historiografia moderna há muito abandonou esta ideia. Que na Igreja nascente a Eucaristia tenha sido, desde o início, entendida como um sacrifício, até num texto como a Didaquê, que é de certo modo difícil e marginal face à grande Tradição, é uma chave interpretativa de primeira importância.

Mas há outro aspecto hermenêutico fundamental na leitura e na interpretação do testemunho bíblico. O fato de que eu posso, ou não, reconhecer um sacrifício na Eucaristia tal qual o Senhor instituiu, depende mais essencialmente da questão de saber o que eu entendo por sacrifício, consequentemente no que se chama de pré-compreensão. A pré-compreensão de Lutero, por exemplo, em particular sua concepção da relação entre o Antigo e o Novo Testamento, sua concepção do evento e da presença histórica da Igreja, era tal que a categoria de sacrifício, como ele via, não poderia aparecer como outra coisa a não ser uma impiedade quando aplicada à Eucaristia e à Igreja. O debate a que Stefan Orth se refere mostra o quão confusa e atrapalhada é a ideia de sacrifício entre quase todos os autores, e mostra claramente quanto se precisa fazer aqui. Para o teólogo crente, é claro que é a própria Escritura que deve ensinar-lhe a definição essencial de sacrifício, e isto resultará de uma leitura “canônica” da Bíblia, em que a Escritura é lida em sua unidade e em seu dinamismo. Os diferentes estágios dela recebem seu significado final de Cristo, a quem tudo isso conduz. Por esta mesma norma a hermenêutica que aqui se pressupõe é uma hermenêutica de fé, encontrada na lógica interna da fé. Não é óbvio? Sem a fé, a própria Escritura não é Escritura, mas sim uma coletânea desorganizada de obras literárias que não pode pretender ter qualquer significado normativo atualmente.

3. Sacrifício e Páscoa

A tarefa a que se alude aqui excede, obviamente, os limites de uma palestra; permitam-me, então, fazer uma referência ao meu livro sobre o “Espírito da Liturgia” no qual procurei dar as linhas principais desta questão. O que emerge disso é que, no seu curso através da história das religiões e da história bíblica, a ideia de sacrifício teve conotações que vão muito além da área de discussão que costumeiramente associamos à ideia de sacrifício. De fato, abre-se um portão para uma compreensão global do culto e da liturgia: estas são as grandes perspectivas que eu gostaria de tentar apontar aqui. Necessariamente preciso omitir também questões particulares de exegese, em particular o problema fundamental da importância da Instituição, na temática da qual tentei prover alguns pensamentos na minha contribuição em “A Eucaristia e a Missão”.

Há, contudo, uma observação que não posso deixar de fazer. Na revisão bibliográfica mencionada, Stefan Orth diz que o fato de se ter evitado, após o Vaticano II, a ideia de sacrifício, “levou o povo a pensar no culto divino a partir da Festa da Páscoa nos relatos da Última Ceia”. À primeira vista, esta formulação parece ambígua: pensa-se no culto divino nos termos das narrativas da Última Ceia, ou nos termos da Páscoa, à qual as narrativas se referem como contexto cronológico, sem contudo a descreverem? Seria correto dizer que a Páscoa Judaica, a instituição relatada em Êx 12, adquire um novo significado no Novo Testamento. É aí que se manifesta um grande movimento histórico que, nas origens, remonta à Última Ceia, à Cruz e à Ressurreição de Jesus. Mas o que é mais espantoso na exposição de Orth é a oposição posta entre a ideia de sacrifício e a Páscoa. O Antigo Testamento Judeu priva a tese de Orth de significado, pois da lei do Deuteronômio em diante, a imolação de cordeiros está associada ao templo; e mesmo no período mais antigo, quando a Páscoa ainda era uma festa familiar, a imolação dos cordeiros já tinha um caráter sacrifical. Assim, precisamente pela tradição da Páscoa, a ideia de sacrifício é levada às palavras e gestos da Última Ceia, onde está presente também na base de um segunda passagem do Antigo Testamento, Êxodo 24, que relata a conclusão da Aliança no Sinai. Aí é relatado que o povo era aspergido com o sangue das vítimas trazidas previamente, e que Moisés disse, nesta ocasião: “Este é o sangue da Aliança que Javé faz convosco, de acordo com todas estas disposições” (Êx 24,8). Assim, a nova Páscoa Cristã é expressamente interpretada nas narrativas da Última Ceia. A Igreja nascente sabia que a Cruz era um sacrifício, porque a Última Ceia seria um gesto vazio sem a realidade da Cruz e da Ressurreição que nela é antecipada e tornada acessível por todo o tempo em seu conteúdo interior.

Eu menciono esta estranha oposição entre a Páscoa e o sacrifício, porque representa o princípio arquitetônico de um livro recém publicado pela Fraternidade São Pio X, afirmando que há uma ruptura dogmática entre a nova liturgia de Paulo VI e a precedente tradição litúrgica católica. Essa ruptura é vista precisamente no fato de tudo ser interpretado, de agora em diante, à luz do “mistério pascal”, e não do sacrifício expiatório e redentor de Cristo; a categoria de mistério pascal é tida como o coração da reforma litúrgica, e é precisamente isto que parece ser a prova de ruptura com a doutrina clássica da Igreja. É claro que há autores que são abertos a tal equívoco; mas que isso seja um equívoco é completamente evidente para os que olham mais de perto. Na realidade, o termo “mistério pascal” claramente se refere às realidade que tomaram lugar da Quinta-feira Santa até a manhã do Domingo de Páscoa: a Última Ceia como antecipação da Cruz, o drama do Gólgota e a Ressurreição do Senhor. Na expressão “mistério pascal” estes acontecimentos são vistos de modo sintético, como um só evento, como “a obra de Cristo”, como ouvimos o Concílio dizer no início, que teve lugar historicamente e ao mesmo tempo transcende este ponto específico no tempo. Como este evento é, interiormente, um ato de culto prestado a Deus, poderia tornar-se culto divino, e dessa forma estar presente para todas as épocas. A teologia pascal do Novo Testamento, sobre a qual lançamos um rápido olhar, dá-nos a entender precisamente isto: o aparente episódio profano da Crucificação de Cristo é um sacrifício de expiação, um ato salvador do amor reconciliador de Deus feito homem. A teologia da Páscoa é a teologia da redenção, uma liturgia de um sacrifício expiatório. O Pastor tornou-se Cordeiro. A visão do cordeiro, que aparece na história de Isaac, o cordeiro que fica preso nos arbustos e resgata o filho, tornou-se uma realidade; o Senhor tornou-se um Cordeiro; ele se permite ser preso e sacrificado, para nos libertar.

Tudo isto se tornou muito estranho ao pensamento contemporâneo. Reparação (“expiação”) pode significar talvez algo dentro dos limites dos conflitos humanos e o pagamento da culpa que domina entre os seres humanos, mas sua transposição para o relacionamento entre Deus e o homem não pode acontecer. Isto, com certeza, é o grande resultado do fato de que nossa imagem de Deus tem se obscurecido, tem se aproximado do deísmo. Não se pode mais imaginar que as ofensas humanas possam ferir a Deus, e menos ainda que elas precisem de uma expiação tal a que constitui a Cruz de Cristo. O mesmo se aplica à substituição vicária: nós dificilmente podemos ainda imaginar algo deste tipo – nossa imagem do homem tornou-se por demais individualista para isso. Assim, a crise da liturgia teve suas bases em ideias centrais acerca do homem. No intuito de superar a crise, banalizar a liturgia e transformá-la numa simples reunião e uma refeição fraterna não é a solução. Mas como podemos escapar de tais desorientações? Como podemos recuperar o significado desta coisa imensa que está no coração da mensagem da Cruz e da Ressurreição? Numa última análise, não através de teorias e reflexões acadêmicas, mas somente através da conversão, por uma mudança radical de vida. É, contudo, possível destacar algumas coisas que abrem o caminho para esta mudança de coração, e eu gostaria de apresentar algumas sugestões neste sentido, em três etapas.


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Por Luís Augusto - membro da ARS

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