A Teologia da Liturgia, por Card. Ratzinger - Parte IV (final e PDF)
Pax et bonum!
6. O sacrifício espiritual
7. Cristo, o sujeito da liturgia
Quarta e última parte da conferência sobre Teologia Litúrgica, dada pelo Cardeal Joseph Ratzinger nas famosas Journees Liturgiques de Fontgombault, na França, em 2001.
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6. O sacrifício espiritual
Finalmente, gostaria de apontar muito brevemente um terceiro caminho no qual a passagem do culto de substituição, aquele da imolação de animais, para o verdadeiro sacrifício, a comunhão com a oferta de Cristo, torna-se progressivamente mais clara. Entre os profetas antes do exílio, houve uma crítica extraordinariamente severa ao culto do templo, que Estêvão, para o horror dos doutores e sacerdotes do templo, resume em seu grande discurso, com algumas citações, notadamente este versículo de Amós: “Porventura, casa de Israel, vós me oferecestes vítimas e sacrifícios por quarenta anos no deserto? Aceitastes a tenda de Moloc e a estrela do vosso deus Renfão, figuras que vós fizestes para adorá-las!” (Am 5,25ss, At 7,42). Esta crítica que os profetas fizeram forneceu o fundamento espiritual que permitiu a Israel percorrer o difícil momento que se seguiu à destruição do Templo, quando não houve culto. Israel foi obrigado a conceber, e de modo mais profundo e novo, o que constitui a essência do culto, da expiação, do sacrifício. No tempo da ditadura helenística, quando Israel ficou novamente sem templo e sem sacrifício, o livro de Daniel dá-nos esta oração: “Senhor, fomos reduzidos a nada diante das nações, fomos humilhados diante de toda a terra: tudo, devido a nossos pecados! Hoje, já não há príncipe, nem profeta, nem chefe, nem holocausto, nem sacrifício, nem oblação, nem incenso, nem mesmo um lugar para vos oferecer nossas primícias e encontrar misericórdia. Entretanto, que a contrição de nosso coração e a humilhação de nosso espírito nos permita achar bom acolhimento junto a vós, Senhor, como (se nós nos apresentássemos) com um holocausto de carneiros, de touros e milhares de gordos cordeiros! Que assim possa ser hoje o nosso sacrifício em vossa presença! Que possa (reconciliar-nos) convosco, porque nenhuma confusão existe para aqueles que põem em vós sua confiança. É de todo nosso coração que nós vos seguimos agora, que nós vos reverenciamos, que buscamos vossa face” (Dn 3,37-41).
Assim, gradualmente amadureceu a percepção de que a oração, a palavra, o homem em oração e ele mesmo tornando-se oração são o verdadeiro sacrifício. A luta de Israel poderia entrar aqui num contato frutuoso com a busca do mundo helenístico, que procurava uma maneira de deixar o culto de substituição, o da imolação de animais, no intuito de chegar ao culto propriamente dito, à verdadeira adoração, ao verdadeiro sacrifício. Este caminho leva à ideia da logike tysia – do sacrifício [consistindo] na palavra – que encontramos no Novo Testamento em Rm 12, 1, onde o Apóstolo exorta os crentes a “oferecerem-se a si mesmos como um sacrifício vivo, santo e agradável a Deus”. É isso que é descrito como logike latreia, como um serviço divino de acordo com a palavra, envolvendo a razão. Encontramos a mesma coisa, em outra forma, em Hb 13,15: “Por ele ofereçamos a Deus sem cessar sacrifícios de louvor, isto é, o fruto dos lábios que celebram o seu nome”. Numerosos exemplos dos Padres da Igreja mostram como estas ideias foram estendidas e se tornaram o ponto de junção entre cristologia, fé eucarística e o mistério pascal posto em prática existencial. Gostaria de citar, como exemplo, apenas algumas linhas de Pedro Crisólogo; na verdade, ler-se-ia todo o sermão em sua integridade a fim de se poder seguir esta síntese de uma ponta a outra: “É um estranho sacrifício, onde o corpo se oferece sem o corpo, o sangue sem o sangue! Peço-vos - diz o Apóstolo - pela misericórdia de Deus, que vos ofereçais como vítima viva. Irmãos, este sacrifício é inspirado no exemplo de Cristo, que imolou o seu Corpo, para que os homens possam viver... Torna-te, homem, torna-te o sacrifício de Deus e de seu sacerdote... Deus procura fé, não morte. Ele tem sede da tua promessa, não do teu sangue. É o fervor que o apazigua, não o assassinato”.
Também aqui, trata-se de uma questão de algo totalmente diferente de um mero moralismo, porque o homem é alcançado em todo o seu ser: o sacrifício [consistindo] em palavras – isto, os pensadores gregos já tinham posto em relação ao logos, à própria palavra, indicando que o sacrifício da oração não deveria ser um mero discurso, mas a transmutação do nosso ser no Logos, a nossa união com ele. O culto divino implica que nós mesmos nos tornamos seres da palavra, que nos conformamos ao Intelecto criador. Contudo, uma vez mais, é claro que não podemos fazer isso por nós mesmos e, assim, tudo parece cair novamente na futilidade – até o dia em que a Palavra vem, o verdadeiro, o Filho, quando ele se torna carne e nos atrai para si no êxodo da Cruz. Este verdadeiro sacrifício, que nos transforma a todos em sacrifício, ou seja, que nos une a Deus, que faz com que sejamos conformados a Deus, está, de fato, fixado e achado num evento histórico, mas não está situado como algo no passado atrás de nós. Pelo contrário, torna-se contemporâneo e acessível a nós na comunidade dos crentes e na Igreja orante, no seu sacramento: isto é o que é significado pelo “sacrifício da Missa”.
Estou convencido de que o erro de Lutero estava fundado numa falsa ideia de historicidade, numa pobre compreensão de unicidade. O sacrifício de Cristo não está situado atrás de nós como algo passado. Ele toca todos os tempos e nos é presente. A Eucaristia não é meramente a distribuição de algo que vem do passado, mas a presença do Mistério Pascal de Cristo, que transcende e une todos os tempos. Se o Cânon Romano cita Abel, Abraão, Melquisedec, incluindo-os entre os que celebram a Eucaristia, é na convicção de que neles também, os grandes ofertantes, Cristo estava atravessando o tempo, ou talvez melhor, em sua busca avançavam eles rumo a um encontro com Cristo. A teologia dos Padres, tal como a encontramos no Cânon, não negou a futilidade e a insuficiência dos sacrifícios pré-cristãos; o Cânon inclui, todavia, junto das figuras de Abel e Melquisedec, os próprios “santos pagãos” no mistério de Cristo. O que está acontecendo é que tudo que ocorreu antes é visto em sua insuficiência como uma sombra, mas também que Cristo está atraindo tudo para si; que há, mesmo no mundo pagão, uma preparação para o Evangelho; que até elementos imperfeitos podem levar a Cristo, embora eles possam ainda estar necessitando de purificação.
7. Cristo, o sujeito da liturgia
É o que me traz à conclusão. A Teologia da liturgia significa que Deus age através de Cristo na liturgia e que não podemos agir a não ser por ele e com ele. Por nós mesmos não podemos construir o caminho para Deus. Este caminho não se abre até que Deus mesmo se torne o caminho. E novamente, os caminhos humanos que não levam para Deus são “descaminhos”. Teologia da liturgia significa, ademais, que, na liturgia, o próprio Logos nos fala; e não fala apenas, mas vem com seu corpo e sua alma, sua carne e seu sangue, sua divindade e sua humanidade, a fim de unir-nos a ele, de fazer-nos um só “corpo”. Na liturgia cristã, toda a história da salvação, mais ainda, a história inteira da busca humana por Deus está presente, assumida e trazida à sua meta. A liturgia cristã é uma liturgia cósmica – abraça toda a criação, que “aguarda ansiosamente a manifestação dos filhos de Deus” (Rm 8,19).
Trento não errou, ele se apoiou na sólida fundação da Tradição da Igreja. Continua a ser um modelo confiável. Mas nós podemos e devemos compreendê-lo num jeito mais profundo de extrair das riquezas do testemunho bíblico e da fé da Igreja de todos os tempos. Há verdadeiros sinais de esperança de que esta compreensão aprofundada e renovada de Trento possa, particularmente por meio das Igrejas Orientais, ser mais acessível aos cristãos protestantes.
Uma coisa fique bem clara: a liturgia não deve ser um terreno para experimentos de hipóteses teológicas. Muito rapidamente, nessas últimas décadas, as ideias dos experts entraram na prática litúrgica, frequentemente ignorando a autoridade eclesiástica, através de comissões que têm sido capazes de disseminar, em nível internacional, o seu “consenso momentâneo”, e praticamente transformaram-nas em leis para a ação litúrgica. A liturgia deriva sua grandeza do que ela é, não do que fazemos dela. Nossa participação é, obviamente, necessária, mas como meio de nos inserirmos humildemente no espírito da liturgia e de servirmos àquele que é o verdadeiro sujeito da liturgia: Jesus Cristo. A liturgia não é uma expressão da consciência de uma comunidade que, em todo caso, é dispersa e mutante. Ela é revelação recebida na fé e na oração, e sua medida é consequentemente a fé da Igreja, na qual se acolhe a revelação. As formas que são dadas para a liturgia podem variar de acordo com o tempo e o lugar, como os ritos que são diversos. Essencial é o elo com a Igreja que, de sua parte, está unida pela fé no Senhor. A obediência da fé garante a unidade da liturgia, além das fronteiras de tempo e lugar, e nos leva a experimentar a unidade da Igreja, da Igreja como pátria do coração.
A essência da liturgia, por fim, está sumarizada na oração que São Paulo (1Cor 16,22) e a Didaquê (10,6) nos deixaram: “Maran atha – eis o Senhor – Vinde, Senhor!” Doravante, a Parusia se cumpre na Liturgia, mas precisamente porque ela nos ensina a clamar: “Vinde, Senhor Jesus”, enquanto se vai ao encontro do Senhor que está vindo. Ela sempre nos leva a ouvir novamente sua resposta e a experimentar sua veracidade: “Sim, eu venho depressa” (Ap 22,17-20).
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Obs: conforme prometido, o texto na íntegra em PDF está disponível aqui: http://gloria.tv/?media=132314
Por Luís Augusto - membro da ARS
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