A Teologia da Liturgia, por Card. Ratzinger - Parte III
Terceira parte da conferência sobre Teologia Litúrgica, dada pelo Cardeal Joseph Ratzinger nas famosas Journees Liturgiques de Fontgombault, na França, em 2001.
4. Amor, o coração do sacrifício
5. O novo templo
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4. Amor, o coração do sacrifício
A primeira etapa deverá ser uma questão preliminar sobre o significado essencial da palavra “sacrifício”. As pessoas comumente consideram sacrifício como a destruição de algo precioso aos olhos do homem; destruindo isto o homem deseja consagrar esta realidade a Deus, para reconhecer sua soberania. Na verdade, porém, uma destruição não honra a Deus. A imolação de animais ou do que quer que seja não pode honrar a Deus. “Se tivesse fome, não precisava dizer-te, porque minha é a terra e tudo o que ela contém. Porventura preciso comer carne de touros, ou beber sangue de cabrito?... Oferece, antes, a Deus um sacrifício de louvor e cumpre teus votos para com o Altíssimo”, diz Deus a Israel no Salmo 50(49),12-14. Em que, então, consiste o sacrifício? Não na destruição, nem nisso ou naquilo, mas na transformação do homem, no fato de ele se conformar a Deus. Ele se torna conforme a Deus quando ele se torna amor. “Eis a razão por que o verdadeiro sacrifício é toda obra que permite unirmo-nos a Deus numa santa amizade”, como afirmou Agostinho.
Com esta chave do Novo Testamento, Agostinho interpreta os sacrifícios do Antigo Testamento como símbolos indicando este sacrifício propriamente dito, e isto porque, diz ele, o culto tinha que ser transformado, o símbolo tinha que desaparecer em favor da realidade. “Todas as prescrições divinas das Escrituras que dizem respeito aos sacrifícios do tabernáculo ou do templo, são figuras que se referem ao amor de Deus e do próximo” (Cidade de Deus, X, 5). Mas Agostinho também sabe que o amor só se torna verdadeiro quando leva o homem a Deus e o conduz ao seu verdadeiro fim; ele sozinho pode, igualmente, trazer a unidade dos homens entre si. Por isso, o conceito de sacrifício se refere à comunidade, e a primeira tentativa de definição de Agostinho é ampliada pela seguinte declaração: “A inteira comunidade humana redimida, isto é, a assembleia e a comunidade dos santos, é oferecida a Deus pelo Sumo Sacerdote que ofereceu a si mesmo” (Ibid, X,6). E ainda mais simples: “Este sacrifício somos nós mesmos”, ou novamente: “Tal é o sacrifício cristão: a multidão – um mesmo corpo em Cristo” (Ibid, X, 6). O sacrifício, então, consiste, devemos dizê-lo uma vez mais, num processo de transformação, na conformidade do homem com Deus, em sua teósis, como diriam os [Santos] Padres. Consiste, para expressar numa fraseologia moderna, na abolição da diferença – na união entre Deus e o homem, entre Deus e a criação: “Deus tudo em todos” (1Cor 15,28).
Mas como tem lugar esse processo que nos torna amor e um só corpo com Cristo, que nos faz tornar-se um com Deus? Como acontece esta abolição da diferença? Antes de tudo, existe aqui um limite notável entre as religiões fundadas sobre a fé de Abraão de um lado, e do outro lado as outras formas de religião, como particularmente encontramos na Ásia, e também aquelas baseadas, provavelmente, em tradições asiáticas – no estilo plotiniano do neoplatonismo. Aí, união significa libertação quanto à finitude (auto-consciência), que em última análise é vista como uma fachada, a abolição do eu no oceano daquele que é completamente outro, o qual, comparado ao nosso mundo de fachadas, é negação que, todavia, é o único verdadeiro ser. Na fé cristã, que completa a fé de Abraão, a união é vista de uma forma completamente diferente: é a união de amor, na qual as diferenças não são destruídas, mas transformadas numa mais elevada união dos que se amam, tal como se encontra, como protótipo, na união trinitária de Deus. Considerando que, em Plotino por exemplo, a finitude é um afastamento da unidade e, por assim dizer, o cerne do pecado e, portanto, o cerne de todo mal, a fé cristã não vê a finitude como uma negação, mas como uma criação, o fruto da vontade divina que cria um parceiro livre, uma criatura que não tem de ser destruída, mas deve ser completada, deve inserir-se no ato livre de amor. A diferença não é abolida, mas torna-se o meio para uma unidade mais elevada. Esta filosofia de liberdade, que está na base da fé cristã e a diferencia das religiões asiáticas, inclui a possibilidade da negação. O mal não é um mero afastamento do ser, mas a consequência de uma liberdade mal utilizada. A via da unidade, a via do amor, é, pois, a via da conversão, a via da purificação: toma a forma da cruz, passa pelo Mistério Pascal, pela morte e ressurreição. Ela precisa do Mediador que, em sua morte e Ressurreição, faz-se caminho, atrai-nos para si e nos completa (Jo 12,32).
Lancemos um olhar sobre aquilo que temos dito. Em sua definição: sacrifício é igual a amor, Agostinho justamente enfatiza o dizer, presente em diferentes variações no Antigo e no Novo Testamento, que ele toma de Oséias: “eu quero amor e não sacrifício” (6,6; Santo Agostinho, Cidade de Deus X, 5). Mas este dizer não coloca meramente uma oposição entre o ethos e o culto – assim o Cristianismo seria reduzido a um moralismo. Ele se refere a um processo que é mais que uma filosofia moral, refere-se a um processo em que Deus toma a iniciativa. Só ele pode despertar o homem para ir em direção ao amor. Este é o amor com que Deus ama, o qual, somente, faz crescer nosso amor por ele. Este fato de ser amado é um processo de purificação e transformação, no qual não estamos apenas abertos a Deus, mas unidos aos outros. A iniciativa de Deus tem um nome: Jesus Cristo, o próprio Deus que se tornou homem e que se dá a nós. Eis porque Agostinho poderia sintetizar tudo dizendo: “Tal é o sacrifício dos cristãos: a multidão é um mesmo corpo em Cristo. A Igreja celebra este mistério pelo sacrifício do Altar, bem conhecido aos crentes, porque nele se mostra que, naquilo que ela oferece, é ela mesma que é oferecida” (Ibid. X, 6). Qualquer um que tenha entendido isto, não mais será da opinião de que falar do sacrifício da Missa seja ao menos muito ambíguo ou mesmo um terrível horror. Pelo contrário: se não nos lembramos disto, nós perdemos de vista a grandeza daquilo que Deus nos dá na Eucaristia.
5. O novo templo
Agora eu gostaria de mencionar, novamente de modo bem breve, duas outras abordagens. Uma importante indicação é dada, na minha opinião, na cena da purificação do templo, particularmente na forma deixada por João. João, de fato, relata uma frase de Jesus que não aparece nos Sinóticos, exceto no julgamento de Jesus, na boca de falsas testemunhas, e de um jeito distorcido. A reação de Jesus aos mercadores e aos cambistas no templo foi praticamente um ataque à imolação de animais, que lá eram oferecidos e, portanto, um ataque à forma existente de culto e à forma existente de sacrifício em geral. Eis porque as autoridades judaicas competentes perguntaram-lhe, com boa razão, por qual sinal ele justificava uma atitude que só poderia ser tomada como um ataque à lei de Moisés e às prescrições sagradas da Aliança. Então Jesus responde: “Destruí (dissolvei) este santuário e em três dias eu o reconstruirei” (Jo 2,19). Esta súbita fórmula evoca uma visão que o próprio João diz que os discípulos não entenderam até a Ressurreição, recordando o que aconteceu, e que os levou a “acreditar na Escritura e na palavra de Jesus” (Jo 2, 22). Por isso eles agora entendem que o templo foi abolido no momento da crucificação de Jesus: Jesus, de acordo com João, foi crucificado exatamente no momento em que os cordeiros pascais eram imolados no santuário. No momento em que o Filho faz de si mesmo cordeiro, isto é, dá-se livremente ao Pai e, assim, a nós, um fim é dado às antigas prescrições de um culto que só poderia ser um sinal das verdadeiras realidades. O templo é “destruído”. Doravante, seu corpo ressuscitado – ele mesmo – torna-se o templo da humanidade, no qual toma lugar a adoração em espírito e verdade (Jo 4, 23). Mas espírito e verdade não são conceitos filosóficos abstratos – ele mesmo é a verdade e o espírito é o Espírito Santo que dele procede. Aqui também, torna-se, assim claro, que o culto não é substituído por uma filosofia moral, mas que o culto antigo chega a um fim, com suas substituições e com seus frequentes trágicos equívocos, porque a realidade mesma se manifesta, o novo templo: o Cristo ressuscitado que nos atrai, que nos transforma e que nos une a ele. Mais uma vez torna-se claro que a Eucaristia da Igreja – para usar a terminologia de Agostinho – é o sacramentum do verdadeiro sacrificium – o sinal sagrado pelo qual aquilo que é significado é produzido, realizado.
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Por Luís Augusto - membro da ARS
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