O Sinal da Cruz
Pax et bonum!
Hoje, quando rezava antes de tomar o café da manhã, deu-me vontade de postar algo sobre o Sinal da Cruz. Lembrei-me logo da Catholic Encyclopedia e traduzi o artigo que segue.
Creio que será bastante edificante, para os caros leitores, compreender um pouco mais deste sinal que trazemos como herança da antiguidade cristã. Boa leitura!
Obs: as imagens não estão presentes no artigo original.
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O Sinal da Cruz
Escultura de Cristo no topo da entrada da Basílica de São Pedro, Vaticano
Um termo aplicado a vários atos manuais, de caráter litúrgico ou devocional, que têm ao menos isto em comum: o gesto de traçar duas linhas com interseção formando ângulos retos indicando simbolicamente a figura da cruz de Cristo.
Mais comum e apropriadamente a expressão "sinal da cruz" é usada para a grande cruz traçada da testa para o peito e de um ombro para o outro, como os Católicos são ensinados a fazer sobre si quando começam suas orações, e também como o sacerdote faz aos pés do altar quando começa a Missa com as palavras: "In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti" (no início da Missa o celebrante faz o sinal da cruz deixando a mão esquerda sob o peito; levando a mão direita para a testa, ao tocá-la com as pontas dos dedos, diz: In nomine Patris; tocando o peito com a mesma mão diz: et Filii; tocando o ombro esquerdo e o direito diz: et Spiritus Sancti; e unindo novamente as mãos acrescenta: Amen.) O mesmo sinal ocorre com frequência durante a Missa, por exemplo, às palavras "Adjutorium nostrum in nomine Domini", "Indulgentiam" depois do Confiteor, etc., bem como no Ofício Divino, por exemplo, na invocação "Deus in adjutorium nostrum intende", no início do "Magnificat", do "Benedictus", do "Nunc Dimittis", e em várias outras ocasiões.
Pintura de sacerdote, coroinha e fiel fazendo o sinal da cruz no início da Missa
Outro tipo de sinal da cruz é o que é feito no ar pelos bispos, padres e outros ao abençoar pessoas ou objetos. Esta cruz também ocorre várias vezes na liturgia da Missa e em quase todos os rituais ligados aos sacramentos e sacramentais.
Uma terceira variação é representada pela pequena cruz, geralmente feita com o polegar, a qual o padre ou o diácono traça, por exemplo, sobre o livro dos Evangelhos e na testa, lábios e peito na Missa, bem como sobre os lábios quando se diz "Domine labia mea aperies" no Ofício, ou novamente na testa das crianças no Batismo, e sobre vários órgãos dos sentidos na Extrema Unção, etc.
Sinal da Cruz traçado com o polegar sobre o texto do Evangelho na Missa
Outra variante do mesmo santo sinal pode ser reconhecida no "Lay Folks Mass Book" ("Livro da Missa para o povo leigo", do séc. XIII), ao dizer que o povo, após o Evangelho, deveria traçar uma cruz no banco ou na parede ou num livro e então beijá-la. Isto era prescrito em práticas antigas como a de que o padre subindo ao altar antes do Introito deveria primeiro fazer uma cruz sobre a toalha do altar e beijar a cruz traçada. Ademais parece que o costume, prevalecente na Espanha e noutros países, pelo qual aparentemente se beija o dedo depois de se fazer o sinal da cruz comum, tem uma origem similar. O polegar sobre o indicador forma uma cruz à qual se pressiona os lábios com devoção.
De todos os métodos supracitados de venerar este símbolo vivificante e de o adotar como emblema, o traçar uma pequena cruz parece ser o mais antigo. Temos evidências positivas nos antigos Padres de que tal prática era familiar aos cristãos do séc. II. "Em todas as nossas viagens e movimentos", diz Tertuliano (De cor. Mil., iii), "em todas as nossas chegadas e saídas, ao nos calçarmos, no banho, à mesa, acendendo nossas velas, ao nos deitamos, ao nos sentarmos, seja o que for que nos ocupa, marcamos nossas frontes com o sinal da cruz". De outro modo, este deve ter logo se tornado um gesto de bênção, como o mostrariam várias citações dos Padres no séc. IV. Assim São Cirilo de Jerusalém, em suas "Catecheses" (xiii, 36) comenta: "não nos envergonhemos de confessar o Crucificado. Seja a cruz o nosso selo, feita com coragem por nossos dedos em nossa testa e em tudo; sobre o pão que comemos e sobre aquilo que bebemos, em nossas indas e vindas; antes de dormirmos, ao nos deitarmos e ao despertarmos; quando estivermos viajando e quando estivermos descansando".
O desenvolvimento parece ter seguido esta sequência. Originalmente a cruz era traçada pelos Cristãos com o polegar em suas testas. Esta prática é atestada por numerosas alusões na literatura Patrística, e está claramente associada em ideia a certas referências nas Esrituras, notadamente Ezequiel 9,4 (a marca da letra Tau); Êxodo 17,9-14; e especialmente Apocalipse 7,3; 9,4 e 14,1. Dificilmente menos antigo é o costume de traçar a cruz sobre objetos - já Tertuliano fala das Cristãs "assinalando" suas camas (cum lectulum tuum signas, "Ad uxor.", ii, 5) antes de se retirar para o descanso - e logo ouvimos sobre o sinal da cruz sendo traçado nos lábios (Jerome, "Epitaph. Paulæ") e sobre o coração (Prudentius, "Cathem.", vi, 129). Naturalmente se o objeto estivesse longe, a cruz direcionada a ele seria feita no ar. Assim Epifânio nos conta (Adv. Hær., xxx, 12) de um certo homem santo chamado Josefo, que comunicou a um vaso de água o poder de anular encantamentos mágicos "traçando sobre o vaso com seu dedo o sinal da cruz" enquanto pronunciava uma forma de oração. Novamente, meio século após, Sozomen, o historiador da igreja (VII, xxvi), descreve como o Bispo Donato, quando atacado por um dragão, "fez o sinal da cruz no ar com seu dedo e espantou o monstro". Tudo isto obviamente sugere uma cruz maior feita sobre o corpo todo, e talvez o exemplo mais antigo que possa ser citado por nós venha de uma fonte, possivelmente do séc. IV ou V. Na vida de Santa Nino, uma santa mulher, honrada como a Apóstola da Georgia, conta-se-nos nestes termos de um milagre operado por ela: "Santa Nino começou a orar e rogar a Deus por longo tempo. Então ela tomou sua cruz (de madeira) e com ela tocou a cabeça, os pés e os ombros da Rainha, fazendo o sinal da cruz e imediatamente ela foi curada" (Studia Biblica, V, 32).
Parece muito provável que a introdução geral de nossa atual cruz maior (da testa para o peito e de um ombro a outro) tenha sido resultado indireto da controvérsia Monofisita. O uso do polegar sozinho ou do simples indicador, que era inevitável enquanto se fazia apenas uma pequena cruz na testa, parece ter dado lugar, por razões simbólicas, para o uso de dois dedos (o indicador e o médio, ou o polegar e o indicador) como simbolizando as duas naturezas e as duas vontades em Jesus Cristo. Mas se dois dedos eram para ser usados, a cruz maior, em que se tocava testa, peito, etc, sugeria a si mesma como o único gesto natural. De fato um movimento grande destes era requirido para tornar perceptível que alguém estava usando dois dedos ao invés de um. Numa data um tanto posterior, por toda a maior parte do Oriente, três dedos, ou melhor o polegar e dois dedos eram mostrados, enquanto o anelar e o mínimo eram dobrados na palma.
Modo atual de se fazer o sinal da cruz entre os bizantinos
Estes dois simbolizavam as duas naturezas ou vontades em Cristo, enquanto os três estendidos denotavam as três Pessoas da Santíssima Trindade. Ao mesmo tempo esses dedos serviam como que para indicar a comum abreviação I X C (Iesous Christos Soter - Jesus Cristo Salvador, em grego), o indicador representando o I, o médio cruzado com o polegar erguido formando o X e o médio curvado sugerindo o C. Na Armênia, contudo, o sinal da cruz feito com dois dedos permanece até hoje. Muito desse simbolismo passou para o Ocidente, embora mais tarde.
Sinal da Cruz usado antigamente pelos ortodoxos russos
Sinal da Cruz usado nas bênçãos do rito bizantino.
IC XC são as primeiras e últimas letras de IHCOYC XPICTOC (Iesous Christos - Jesus Cristo)
Sacerdote bizantino fazendo o sinal da cruz sobre o cálice
Em geral parece provável que que a última prevalência da cruz grande se deve a uma instrução de Leão IV em meados do séc. IX. "Assinala o cálice e a hóstia", escreve, "com uma cruz reta e não com círculos ou variando os dedos, mas com dois dedos estendidos e o polegar escondido neles, pelo que a Trindade é simbolizada. Acautela-te de fazer o sinal da cruz corretamente, caso contrário não podes abençoar nada" (ver Georgi, "Liturg. Rom. Pont.", III, 37). Embora isto, é claro, se refira primeiramente à posição da mão ao abençoar com o sinal da cruz, parece ter sido adaptado popularmente para fazer o sinal da cruz sobre si. Aelfric (por volta do ano 1000) provavelmente tinha isto em mente quando conta a seus ouvintes num de seus sermões: "Um homem pode acenar admiravelmente com as mãos sem criar nenhuma bênção, a menos que faça o sinal da cruz. Mas se ele o fizer o demônio logo se amedrontará por conta do vitorioso sinal. Com três dedos se deve abençoar a si mesmo pela Santa Trindade" (Thorpe, "The Homilies of the Anglo-Saxon Church" I, 462). Meio século antes estes cristãos anglo-saxões eram exortados a "abençoar todo o seu corpo com o sinal da cruz de Cristo" (Blicking Hom., 47), o qual parece assumir esta cruz maior. Beda em sua carta ao Bispo Egberto aconselha-o a recordar ao seu rebanho "com que frequente diligência fazer sobre eles mesmos o sinal da cruz de nosso Senhor", embora aqui não possamos fazer inferência quanto ao tipo de cruz feita. Por outro lado, quando encontramos no chamado "Prayer Book of King Henry" (Livro de Oração do Rei Henrique, séc. XI) um direcionamento a se marcar com o sinal da cruz, nas orações da manhã, "os quatro lados do corpo", há uma razão para supor que significa o sinal maior com o qual hoje estamos familiarizados.
Neste período a maneira de o fazer no Ocidente parece ter sido idêntica à feita atualmente no Oriente, isto é, apenas três dedos sendo usados, e a mão indo do ombro direito para o esquerdo. O assunto, deve-se confessar, não é de todo claro e Thalhofer (Liturgik, I, 633) é inclinado para a opinião de que nas passagens de Belethus (xxxix), Sicardus (III, iv), Inocêncio III (De myst. Alt., II, xlvi), e Durandus (V, ii, 13), aos quais comumente se apela em prova disso, estes autores tivessem em mente a pequena cruz feita na testa ou sobre objetos externos, em que a mão naturalmente se move da direita para a esquerda, e não a grande cruz feita de um ombro a outro. Ainda, uma rubrica numa cópia manuscrita do Missal de York claramente requer que o padre, quando se assinalar com a patena, toque o ombro esquerdo depois do direito. Além disso é ao menos claro, por muitas pinturas e esculturas, que no séc. XI e XII a prática grega de estender apenas três dedos foi seguida por muitos cristãos latinos. Assim o compilador do Ancren Riwle ("Guia para Monjas", por volta do ano 1200) ensina suas freiras a fazer uma pequena cruz da testa ao peito com três dedos ao "Deus in adjutorium". Todavia pode haver uma pequena dúvida se muito antes do fim da Idade Média o sinal maior era mais comumente feito no Ocidente com a mão aberta e com a barra da cruz sendo traçada da esquerda para a direita. No "Myroure of our Ladye" ("Espelho de Nossa Senhora", p. 80, provavelmente escrito no séc. XV) as Monjas Brigidinas de Sião deram uma razão mística para a prática: "Abençoai-vos com o sinal da santa cruz, para afugentar o demônio com seus embustes. Pois, como disse Crisóstomo, em qualquer lugar que os demônios vêem o sinal da cruz eles fogem, temendo-o como uma vara com a qual são derrotados. E nesta bênção começai com a mão na cabeça, descendo, e da esquerda, crendo que nosso Senhor Jesus Cristo desceu da cabeça, ou seja do Pai, para a terra pela sua santa Encarnação, e da terra para a esquerda, que é o inferno, pela sua dolorosa Paixão, e daí para a direita do Pai pela sua gloriosa Ascensão".
O ato manual de traçar a cruz com a mão ou o polegar tem sido comumente, em todas as eras, embora não necessariamente, acompanhado por uma forma de palavra. A fórmula, contudo, tem mudado muito. Nos tempos mais antigos temos evidência de tal invocação como "O sinal de Cristo", "O selo do Deus vivo", "Em nome de Jesus", etc. Depois encontramos "Em nome de Jesus de Nazaré", "Em nome da Santíssima Trindade", "Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo", "O nosso auxílio está no nome do Senhor", "Vinde, ó Deus, em meu auxílio". Membros da Igreja Ortodoxa Grega quando se benzem com três dedos, como explicado acima, comumente usam a invocação: "Santo Deus, Santo Forte, Santo Imortal, tende piedade de nós", palavras essas, como bem se sabe, que são usadas na forma grega pela Igreja Ocidental no Ofício da Sexta-feira Santa.
Sacerdote de Rito Romano abençoando fiéis no fim da Missa
É desnecessário insistir sobre os efeitos de graça e poder atribuídos pela Igreja em todos os tempos ao uso do santo sinal da cruz. Desde o período mais antigo é empregado em todos os exorcismos e conjurações como arma contra os espíritos das trevas, e tem lugar não menos firme no ritual de todos os sacramentos, em todas as formas de bênção e consagração. Uma famosa dificuldade é a sugerida ao se fazer o sinal da cruz repetidamente sobre a Hóstia e o Cálice depois de ditas as palavras da instituição da Missa. A verdadeira explicação é provavelmente encontrada no fato de que no tempo em que essas cruzes foram introduzidas (variam muito nas cópias primitivas para terem sido de instituição primitiva), o clero e os fiéis não se perguntavam claramente em que preciso momento a transbustanciação dos elementos era efetivada. Eles estavam satisfeitos em crer que era o reultado de toda a oração consagratória que chamamos de Cânon, sem determinar o momento exato em que as palavras eram operativas; assim como estamos satisfeitos em saber que o Precioso Sangue é consagrado por todas as palavras ditas sobre o cálice, sem pararmos para refletir se todas são necessárias. Por isso os sinais da cruz continuam até o fim do Cânon e podem ser consideradas como mentalmente referentes a uma consagração tida como ainda incompleta. O processo é o inverso daquele na Igreja Grega durante a "Grande Entrada", a maior honra tributada aos simples elementos do pão e do vinho, antecipando a consagração que receberão pouco depois.
Thurston, Herbert. "Sign of the Cross." The Catholic Encyclopedia. Vol. 13. New York: Robert Appleton Company, 1912. 23 Oct. 2010.
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Traduzido por Luís Augusto - membro da ARS
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