Normas, para quê? Respondem João Paulo II, Cardeal Arinze e a Redemptionis Sacramentum

Pax et bonum!

Considero muito a propósito respondermos com o magistério da Igreja a uma dúvida pertinente, que às vezes povoa a mente de simples fieis, presbíteros ou até de estudiosos da Sagrada Liturgia: "Rubricas, normas, para quê?"
Recordo no momento uma das perguntas de uma entrevista feita ao Pe. Paulo Ricardo de Azevedo Júnior, da Arquidiocese de Cuiabá, sobre a Liturgia, bem como sua resposta:

Aos que querem a Missa mais sóbria, de acordo com as normas, com incenso, latim, paramentos bonitos, logo se lhes acusam de “rubricistas” ou de “obtusos”, “antiquados” e até de “fariseus”. Dizem que a Missa tem que ser “alegre”, com improvisação, sem se prender a fórmulas. Alegam que pra Jesus, “o que importa é o coração, é o interior”. Como responder a tudo isso?
“Unum facere et alium non omittere”, Fazer uma coisa e não omitir a outra. Ou seja, observar as normas litúrgicas e obedecê-las não é algo que está divorciado com o coração. É necessário escolher as duas coisas. Obediência das normas e soprar sobre estas normas, que são letra morta, o Espírito com o qual elas foram elaboradas. O espírito que é uma verdadeira tradição espiritual da Igreja. Por isso, essa dicotomia é uma falsa alternativa. Seria como pedir a uma pessoa que escolhesse entre o corpo e a alma, dizendo a ela ou ela fica com a alma ou ela fica com o corpo. A única resposta possível é dizer: eu não escolho, eu fico com os dois. Eu fico com a norma litúrgica e fico com o coração.
Partindo para a resposta sobre o "por quê" das rubricas, leiamos o que nos dizem o Cardeal Arinze e o Beato João Paulo II.
Em 2003, este Papa nos dizia de modo muito convincente, em sua Carta Encíclica Ecclesia de Eucharistia (n. 52):

Temos a lamentar, infelizmente, que sobretudo a partir dos anos da reforma litúrgica pós-conciliar, por um ambíguo sentido de criatividade e adaptação, não faltaram abusos, que foram motivo de sofrimento para muitos. Uma certa reação contra o "formalismo" levou alguns, especialmente em determinadas regiões, a considerarem não obrigatórias as "formas" escolhidas pela grande tradição litúrgica da Igreja e do seu magistério e a introduzirem inovações não autorizadas e muitas vezes completamente impróprias.
Por isso, sinto o dever de fazer um veemente apelo para que as normas litúrgicas sejam observadas, com grande fidelidade, na celebração eucarística. Constituem uma expressão concreta da autêntica eclesialidade da Eucaristia; tal é o seu sentido mais profundo. A liturgia nunca é propriedade privada de alguém, nem do celebrante, nem da comunidade onde são celebrados os santos mistérios. O apóstolo Paulo teve de dirigir palavras ásperas à comunidade de Corinto pelas falhas graves na sua celebração eucarística, que tinham dado origem a divisões (skísmata) e à formação de facções (airéseis) (cf. 1 Cor 11, 17-34). Atualmente também deveria ser redescoberta e valorizada a obediência às normas litúrgicas como reflexo e testemunho da Igreja, una e universal, que se torna presente em cada celebração da Eucaristia. O sacerdote, que celebra fielmente a Missa segundo as normas litúrgicas, e a comunidade, que às mesmas adere, demonstram de modo silencioso mas expressivo o seu amor à Igreja. Precisamente para reforçar este sentido profundo das normas litúrgicas, pedi aos dicastérios competentes da Cúria Romana que preparem, sobre este tema de grande importância, um documento específico, incluindo também referências de carácter jurídico. A ninguém é permitido aviltar este mistério que está confiado às nossas mãos: é demasiado grande para que alguém possa permitir-se de tratá-lo a seu livre arbítrio, não respeitando o seu carácter sagrado nem a sua dimensão universal.
Um ano depois veio à luz o documento referido pelo Papa - a Instrução Redemptionis Sacramentum. Na apresentação dela, disse o Cardeal Francis Arinze, então Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos:
Poder-se-ia levantar a interrogação acerca do sentido das normas litúrgicas. A criatividade, a espontaneidade, a liberdade dos filhos de Deus e um bom sentido ordinário não são acaso suficientes? Por que motivo o culto de Deus deveria ser regulamentado por intermédio de rubricas e de normas? Não é suficiente ensinar ao povo simplesmente as elevadas beleza e natureza da liturgia?
As normas litúrgicas são necessárias, porque "nela (na liturgia) o Corpo Místico de Jesus Cristo Cabeça e membros presta a Deus o culto público integral. Por isso, toda a celebração litúrgica, por ser obra de Cristo sacerdote e do seu Corpo, que é a Igreja, é ação sagrada por excelência" (Sacrosanctum concilium, 7). O ápice da liturgia é a celebração eucarística. Ninguém se deveria admirar se, ao longo dos tempos, a santa Igreja nossa Mãe desenvolveu palavras, ações e, por conseguinte, linhas diretrizes, em relação a este ato supremo do culto. As normas eucarísticas foram elaboradas para exprimir e salvaguardar o mistério eucarístico e, além disso, para manifestar que é a Igreja que celebra este jubiloso sacrifício e este sacramento.
É evidente que não é suficiente uma conformidade exterior. A participação na Eucaristia exige a fé, a esperança e a caridade, que se manifestam inclusivamente mediante atos de solidariedade com as pessoas que se encontram em necessidade. (...)
Vinculada ao que se disse, há uma tentação a que se deve resistir: isto é, a de pensar que prestar atenção aos abusos litúrgicos constitui uma perda de tempo. Já se escreveu que os abusos sempre existiram e que sempre hão de existir; por conseguinte, deveríamos preocupar-nos sobretudo com a formação e as celebrações litúrgicas positivas.
Esta objeção, parcialmente verdadeira, pode induzir-nos ao equívoco. Nem todos os abusos a propósito da sagrada Eucaristia têm a mesma importância. Alguns deles ameaçam tornar o sacramento  inválido. Outros manifestam uma carência de fé eucarística. Outros ainda  contribuem para  semear confusão entre o povo de Deus e tendem a desconsagrar as celebrações eucarísticas. Os abusos não devem ser subestimados.
Sem dúvida, todos os membros da Igreja têm necessidade de uma formação litúrgica. Em conformidade com o Concílio Vaticano II, "é absolutamente necessário que se resolva em primeiro lugar o problema da formação litúrgica do clero" (Sacrosanctum concilium, 14). Contudo, é também verdade que "num contexto eclesial ou noutro existem abusos que contribuem para obscurecer a fé reta e a doutrina católica acerca deste sacramento admirável" (Ecclesia de Eucharistia, 10). "Não raro, os abusos fundamentam-se num falso conceito de liberdade" (Instrução, 7). "Com efeito, atos arbitrários não favorecem uma renovação efetiva" (Ibid., n. 11), como almeja o Concílio Vaticano II. "Tais abusos nada têm a ver com o espírito autêntico do Concílio e devem ser corrigidos pelos Pastores, com uma atitude de determinação prudente" (João Paulo II, Carta Apostólica por ocasião do 40º aniversário da Constituição conciliar sobre a liturgia, Spiritus et sponsa, 15).
Como reza a Instrução: "A quem modifica os textos litúrgicos com a sua própria autoridade, é importante recordar que a sagrada Liturgia, de fato, está intimamente ligada aos princípios da doutrina, e o uso de textos e ritos não aprovados comporta, por conseguinte, o debilitamento ou a perda do nexo necessário entre a lex orandi e a lex credendi" (n. 10).
Em 19 de março de 2004, a Instrução foi definitivamente aprovada pelo Papa. No dia 25 seguinte, a Instrução foi publicada. A ela devemos o nome de nossa Associação, e é no espírito do magistério que a publicou que desejamos trabalhar para a glória de Deus e a santificação dos homens.
Convidamos nossos leitores a (re)descobrirem o ensino salutar contido naquelas páginas, louvadas por alguns, desprezadas por tantos, contudo vivas e válidas:
Instrução Redemptionis Sacramentum, sobre algumas coisas que se devem observar e evitar acerca da Santíssima Eucaristia
Antes da conclusão legal da Instrução, reza sua última afirmação: "Quisque enim semper meminerit se esse sacrae Liturgiae servitorem" - "Cada um lembre-se sempre que é servidor da sagrada Liturgia".

Por Luís Augusto - membro da ARS

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