Comunhão sob as duas espécies - Parte I

Pax et bonum!

Caríssimos, nesta proximidade da Solenidade do Santíssimo Corpo [e Sangue] de Cristo, no 748º [setingentésimo quadragésimo oitavo] ano da solenidade, após a publicação da Bula "Cum transiturus", do Papa Urbano IV (que a instituiu como universal), consideramos por bem tratar da Comunhão sob as duas espécies no Rito Romano, particularmente seu uso moderno. Infelizmente, há ainda muita confusão disciplinar e doutrinal, neste assunto.
Para começar, traduziremos o artigo da Catholic Encyclopedia, de 1908. Dado o seu tamanho, e para otimizar a leitura de cada parte, dividi-lo-emos em três postagens.
Segue, portanto, a primeira.

Laudes ac grátiae sint omni moménto.
Sanctíssimo ac diviníssimo Sacraménto.

***

A Comunhão sob as duas espécies

Comunhão sob uma espécie é a recepção do Sacramento da Eucaristia sob a espécie ou aparência de pão somente, ou de vinho somente; Comunhão sob as duas ou sob ambas as espécies, a recepção distinta sob as duas ou ambas as espécies, sub utraque specie, ao mesmo tempo.

No presente artigo trataremos do assunto sob os seguintes tópicos:
I. Doutrina católica e disciplina moderna; (N.T.: esta postagem)
II. História das variações de disciplina; (N.T.: em breve)
III. Especulação teológica (N.T.: em breve)

Doutrina católica e disciplina moderna

1. Sob este tópico notem-se os seguinte pontos:
a. No que se refere à Eucaristia como sacrifício, a comunhão do sacerdote celebrante, sob duas espécies, pertence ao menos à integridade, e de acordo com alguns teólogos, à essência, do rito sacrifical, e não pode, portanto, ser omitida sem violar o preceito sacrifical de Cristo: "Fazei isto em memória de mim" (Lc 22,19). Isto é ensinado implicitamente pelo Concílio de Trento (Sess. XXI, c. I; XXII, C. I).
b. Não há preceito divino obrigando os leigos ou os sacerdotes não-celebrantes a receber o sacramento sob as duas espécies (Trento, sess. XXI, C. I).
c. Por conta da união hipostática e da indivisibilidade de sua humanidade glorificada, Cristo está realmente presente e é recebido todo e inteiro, corpo e sangue, alma e divindade, sob cada espécie singular; no tocante aos frutos do sacramento, ninguém que comunga sob uma espécie [somente] está privado de alguma graça necessária para a salvação (Trento, Sess. XXI, c. III).
d. Em referência aos sacramentos em geral, salvo sua substância, salva eorum substantia, isto é, excetuando o que foi estritamente determinado por divina instituição ou preceito, a Igreja tem autoridade para determinar ou modificar os ritos e usos empregados em sua administração, conforme o que ela julgar conveniente para maior proveito dos que recebem ou para a melhor proteção dos próprios sacramentos contra a falta de reverência. Assim, "reconhecendo a Santa Mãe Igreja esta autoridade que tem na administração dos Sacramentos, mesmo tendo sido frequente o uso de comungar sob as duas espécies, desde o princípio [ab initio] da religião cristã, porém verificando, em muitos lugares [latissime], com o passar do tempo, a mudança nesse costume, aprovou, movida por muitas graves e justas causas, a comunhão sob uma só espécie, decretando que isso fosse observado como lei, a qual não é permitido mudar ou reprovar arbitrariamente sem a autorização expressa da Igreja" (Trento, Sess. XXI, c. II). Não só, portanto, não é obrigatória a Comunhão sob as duas espécies para os fiéis, mas o cálice é estritamente proibido por lei eclesiástica a qualquer um que não seja o sacerdote celebrante.
Estes decretos do Concílio de Trento foram direcionados contra os Reformadores do séc. XVI, que, por força de Jo 6,54, Mt 26,26 e Lc 22,17-19, reforçado na maioria dos casos por uma negação da Presença Real e do Sacrifício da Missa, sustentaram a existência de um preceito divino obrigando os fiéis a receber sob as duas espécies, e denunciaram a prática católica de recusar o cálice aos leigos como sendo uma mutilação sacrílega do sacramento. Um século antes, os hussitas [N.T.: seguidores de Jan Huss, teólogo  herege da Boêmia do séc. XV], particularmente o grupo dos calixtinos [N.T.: do latim calix, cálice; eram hussitas mais moderados], tinha afirmado a mesma doutrina, sem negar, todavia, a presença real ou o sacrifício da Missa, e principalmente por conta de Jo 6,54; e o Concílio de Constança, em sua 13ª sessão (1415) já tinha condenado sua posição e afirmado a força vinculante da disciplina existente em termos práticos idênticos aos de Trento (cf. decreto aprovado por Martinho V, 1418, em Denzinger, Enchiridion, n. 585). Deve-se observar que nenhum concílio introduziu uma nova legislação sobre o assunto; ambos contentaram-se em declarar que o costume existente tinha adquirido força de lei. Alguma poucas privilegiadas exceções à lei e umas poucas instâncias de expressa dispensa, ocorrendo depois, serão comentadas abaixo.
2. No que se refere aos méritos da controvérsia utraquista [N.T.: do latim utraque, ambos], se assumirmos os pontos doutrinais envolvidos, isto é, mais precisamente, a ausência de um preceito divino impondo a Comunhão sob as duas espécies, a recepção e presença integrais de Cristo sob cada espécie, e o poder discricionário da Igreja sobre tudo que está ligado aos sacramentos e que não está divinamente determinado, a questão de dar ou recusar o cálice aos leigos torna-se puramente prática e disciplinar e deve ser decidida por uma referência ao duplo propósito a ser mantido, de salvaguardar a reverência devida a este augustíssimo sacramento e de facilitar e encorajar sua recepção frequente e fervorosa. Não se pode duvidar que a disciplina católica atual melhor assegura estes fins. O perigo de se derramar o Precioso Sangue e de outras formas de irreverência; a inconveniência e a demora em ministrar o cálice a grande número - a dificuldade de reservá-lo para a Comunhão fora da Missa; as objeções não sem razão quanto à higiene e outros aspectos, o ato indiscriminado de se beber do mesmo cálice, que por si só seria algo desencorajador à Comunhão frequente no caso de um grande número de pessoas não tão formadas; estas e outras "muitas graves e justas causas" contra a prática utraquista são mais que suficientes para justificar a Igreja em proibi-la. Sobre os pontos doutrinais mencionados acima, o único que deve ser discutido aqui é a questão da existência ou não de um preceito divino impondo a Comunhão sub utraque. Dos textos levantados pelos utraquistas como prova de tal preceito, o mandato "Bebei dele todos vós" (Mt 26,27), e seu equivalente em São Lucas (22,17, isto é, supondo a referência aqui sendo feita ao cálice eucarístico e não ao pascal), não pode ser tomado honestamente como aplicável a ninguém além dos que estavam presentes na ocasião, e somente a eles nesta particular ocasião. Onde se insiste que a ação de Cristo em administrar a Sagrada Comunhão sob as duas espécies, na Última Ceia, tinha a intenção de baixar uma lei para todas as pessoas que comungariam no futuro, dever-se-ia, pela mesma razão, insistir que várias outras circunstâncias acidentais e temporais ligadas à primeira celebração da Eucaristia (por ex.: os ritos pascais precedentes, o uso de pão ázimo, a tomada das espécies sagradas pelos próprios que as recebem) foram igualmente desejadas para ser obrigatórias para todas as futuras celebrações. A instituição sob as duas espécies, ou a consagração separada do pão e do vinho, pertence essencialmente, na opinião católica, ao caráter sacrifical da Eucaristia, distinto do sacramental; e quando Cristo, em suas palavras "Fazei isto em memória de mim" (Lc 22,19), deu aos Apóstolos tanto a ordem como o poder de oferecer o sacrifício Eucarístico, entenderam-no meramente como impondo sobre eles e seus sucessores no sacerdócio a obrigação de sacrificar sub utraque. Esta obrigação a Igreja tem observado rigorosamente.
Em Jo 6,54, Cristo diz: "Se não comerdes a carne do Filho do homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós", mas nos versículos 52 e 59 atribui a vida eterna ao comer "este pão" (que é "minha carne dada para a vida do mundo", sem mencionar o beber seu sangue: "se alguém come deste pão viverá eternamente"). Já a interpretação utraquista suporia que, no versículo 54, Cristo quis enfatizar a distinção entre o modo de recepção "pelo comer" e o modo de recepção "pelo beber", e incluir ambos modos distintamente no preceito que impôs. Mas tal literalismo, extravagante de toda forma, resultaria neste caso em colocar o versículo 54 em oposição ao 52 e ao 59, interpretados da mesma forma rígida. Daqui podemos inferir que, qualquer significado especial que esteja ligado à forma da expressão usada no versículo 54, Cristo não recorreu a ela no propósito de promulgar uma lei da Comunhão sub utraque. A dupla expressão é empregada por Cristo a fim de aumentar o realismo da promessa - enfatizar mais vividamente a realidade da presença eucarística, e transmitir a ideia de que seu Corpo e Sangue eram para ser o perfeito alimento espiritual, comida e bebida, dos fieis. No ensinamento católico sobre a Eucaristia verifica-se plenamente este significado. Cristo é recebido real e integralmente sob cada espécie; e do ponto de vista sacramental não importa se esta comunhão perfeita acontece seguindo a analogia na ordem natural só do alimento sólido ou só do alimento líquido, ou seguindo a analogia de ambos combinados (cf. III abaixo). Em 1 Cor 11,28, para o qual os utraquistas às vezes apelam, São Paulo trata da preparação requerida para uma digna recepção da Eucaristia. Sua menção de ambas as espécies, "o pão e o cálice", é meramente incidental, e não implica nada mais que o simples fato de que a Comunhão sob as duas espécies era o uso que prevalecia nos tempos apostólicos. Do versículo imediatamente anterior (27) pode-se levantar uma dificuldade contra as pressuposições dogmáticas da grande maioria dos utraquistas, e um argumento avançado em prova da doutrina católica da presença e recepção integral de Cristo sob cada espécie. "Todo aquele", diz o apóstolo, "que comer do pão ou beber do cálice do Senhor indignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor", isto é, todo aquele que receber indignamente um deles é réu dos dois. Mas não é preciso insistir neste argumento em defesa da posição católica. Justificamo-nos concluindo que o Novo Testamento não contém prova da existência de um preceito divino vinculante aos fiéis para comungar sob as duas espécies. Mostrar-se-á, ademais, pelo seguinte levantamento histórico, que a Igreja nunca reconheceu a existência de um tal preceito.

Fonte: Toner, Patrick. "Communion under Both Kinds." The Catholic Encyclopedia. Vol. 4. New York: Robert Appleton Company, 1908. Disponível em http://www.newadvent.org/cathen/04175a.htm.

Traduzido por Luís Augusto - membro da ARS

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