"O Portão para a Eternidade" - parte 3/3
3. Sacrifício de Louvor e Redenção
Tendo examinado o Rito Romano à luz da perspectiva humana, estamos bem cientes do fato de que outro ponto de vista é muito mais importante, se quisermos compreender a forma Clássica da Liturgia. A Sagrada Eucaristia é frequentemente chamada de Santo Sacrifício da Missa. Este título é mais apropriado como expressão do dogma da Igreja acerca da identidade entre o Sacrifício do Calvário e o Sacrifício do Altar. “A Eucaristia é primeiramente um Sacrifício”. Estas palavras de João Paulo II em seu documento Dominicæ coenæ resume a doutrina da Igreja repetida pelos Romanos Pontífices e pelos Concílios Ecumênicos ao longo da história. O Sacrifício da Cruz é o centro do plano da salvação. A raça humana sozinha não poderia cumprir o restabelecimento do equilíbrio Divino na criação, destruído pela orgulhosa desobediência. Este ato de reparação teve que ser realizado num ato misericordioso de auto-doação pelo Deus uno e trino, cuja segunda Pessoa tornou-se homem a fim de expiar pelos nossos pecados num sacrifício de amor. Seria um dos piores mal-entendidos acreditar que foi um deus tirano que pediu um sacrifício humano para aplacar sua ira. Pelo contrário, somente porque o próprio Deus tornou-se envolvido no sacrifício, pela Encarnação, é que um ato humano seria suficiente para afastar a maldição que o orgulho humano moldou para si, desde quando o homem se afastou de seu Criador. É através do Deus-homem Jesus Cristo que a Divindade torna possível a verdadeira salvação, em que a humanidade não é simplesmente algo imposto, mas toma parte desta salvação pela natureza humana de Cristo, no poder redentor da divindade. O Amor Divino agiu pelo Sacrifício da Cruz a fim de garantir a liberdade humana no plano final de nossa libertação do mal.
Pela Divina Vontade, o Sacrifício da Cruz esteve já presente na Última Ceia, quando o Senhor instituiu a Sagrada Eucaristia, e está presente todas as vezes em que a Igreja celebra o Sacramento do Altar, segundo a forma confiada a ela pelo Senhor bendito. A intenção sacrifical, que transformou a morte humana sobre a Cruz num sacrifício para a nossa salvação, é uma perfeita união entre a vontade humana de Jesus e a vontade divina da segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Por isto ele é atemporal e pode ser atualizado em qualquer momento histórico onde for celebrado o Rito, ao qual a intenção sacrifical foi unida para sempre pelo poder divino. A juventude e a atemporalidade do Rito, já mencionados antes, têm sua origem primeira nesta realidade sacrifical que está para além da história e que está no ponto mais central da Igreja e de sua vida litúrgica. O amor de Deus por nós nunca cessa. Este amor tornou-se visível em Jesus Cristo, cujo supremo ato de caridade, o Sacrifício da Redenção, permanece para sempre vivo em sua Igreja, tornada instrumento da Redenção continuada.
Como uma consequência, o supremo ato litúrgico da Igreja é uma efetiva re-presentação do Sacrifício de Cristo. Renovado sob os sinais sacramentais da cerimônia eclesiástica, o Sacrifício não é multiplicado, mas tornado presente além do tempo e do espaço. A presença de Cristo que veneramos sob as espécies Eucarísticas do pão e do vinho é a presença sacrificada do Cordeiro em seu Corpo e Sangue. O Rito Romano Clássico da Missa não pode ser confundido com outras coisas. É um Sacrifício. Todos os outros elementos que ele possa ter, ou vêm disso ou levam para isso. A necessidade de purificação, o louvor dos feitos de Deus nos textos litúrgicos e escriturísticos solenemente proclamados, a preparação ritual do altar, do sacerdote, dos dons e de tantos outros elementos indicam que a Igreja vai representar o Sacrifício de Cristo. Mais uma vez, não podemos discutir todos os detalhes da dimensão sacrifical da Santa Missa, mas os três elementos seguintes poderiam claramente denotar o peso dos acima mencionados.
O ofertório do Rito que celebramos foi comparado ao Cânon ou Oração Eucarística da Missa. De fato, a partir do momento em que o sacerdote apresenta os dons do pão e do vinho a Deus, a intenção sacrifical da Igreja torna-se evidente. Quando ele eleva a oblação do pão, também chamada de hóstia, que vem da palavra latina hostia, significando vítima sacrifical ou simplesmente sacrifício, o sacerdote diz: “Recebei, Pai santo, Deus eterno e todo-poderoso, esta hóstia imaculada, que eu, vosso indigno servo, vos ofereço, ó meu Deus vivo e verdadeiro, (...) a fim de que, a mim e a eles, este sacrifício aproveite para a salvação na vida eterna”. Novamente, quando eleva o cálice com vinho, o celebrante reza: “Nós vos oferecemos Senhor, o cálice da salvação, (...) para salvação nossa e de todo o mundo”. Ele então inclina-se profundamente e continua: “Em espírito de humildade e coração contrito, sejamos por vós acolhidos, Senhor, e assim se faça hoje este nosso sacrifício em vossa presença, de modo que vos seja agradável, ó Senhor Nosso Deus”. Em seguida, o sacerdote invoca com um gesto o Espírito Santo e abençoa as oferendas dizendo: “Vinde, ó Santificador, Deus eterno e todo-poderoso, e abençoai este sacrifício preparado para o vosso santo nome”. Por fim, tendo apresentado a oblação da Igreja à Santíssima Trindade, ele se volta para os fieis e os convida à oração com as seguintes palavras: “Orai, irmãos, para que o meu e vosso sacrifício seja aceito por Deus Pai todo-poderoso”, ao que o povo responde: “Receba o Senhor por tuas mãos o sacrifício, para louvor e glória do seu nome, para nosso bem e também de toda a sua santa Igreja”. Assim, torna-se patente que a Igreja compreende sua oblação como iniciação do único misterioso Sacrifício de Cristo, oferecido para a glória de Deus, o qual nos traz salvação e bem-estar. Os gestos que acompanham todas estas orações mostram, de modo semelhante, um caráter sacrifical palpável, que se entrevê no fato de os fieis e o sacerdote olharem para a mesma direção quando apresentam juntos, embora de forma diversa, as oferendas a Deus.
Uma segunda marca do sacrifício que a Igreja celebra durante a Santa Missa deve ser encontrado na própria oração que envolve o ato de consagração – o Cânon ou Oração Eucarística, cujas palavras remontam ao alvorescer da Igreja. Logo no início deste venerável texto, que por cerca de um milênio foi o único Cânon utilizado pelo Missal Romano, a Igreja implora a bênção de Deus em termos marcadamente sacrificais: “A vós, então, Pai clementíssimo, por Jesus Cristo, vosso Filho, Senhor nosso, pedimos e rogamos suplicantes que aceiteis e abençoeis estes dons, estas oferendas, estes santos e ilibados sacrifícios”. Pouco depois ela acrescenta a razão do ato sacrifical: “vos oferecem este sacrifício de louvor por si e por todos os seus, pela redenção de suas almas, na esperança da salvação e da segurança de suas vidas”. Depois de ter pedido a graciosa aceitação da oblação, para ser livre da condenação eterna, a Igreja implora a bênção e a ratificação de Deus sobre ela, a fim de que se torne o Sacrifício de Cristo, seu Corpo e Sangue. Agora a ação Divina começa. A Igreja relata ainda as circunstâncias da Última Ceia, mas aí vem o Senhor bendito, ele mesmo, e fala diretamente e na primeira pessoa pela voz do sacerdote: “Tomai todos e comei, [pois] isto é o meu corpo... [pois] este é o cálice do meu sangue... que será derramado por vós e por muitos para remissão dos pecados”.
O sacrifício está pronto e agora a Igreja se apressa em apresentar a Vítima à Divina Majestade: “nós, vossos servos, oferecemos a hóstia pura, a hóstia santa, a hóstia imaculada, o Pão santo da vida eterna e o Cálice da perpétua salvação”. Em seguida, ela compara este eminente sacrifício aos sacrifícios antigos e pede a Deus que o aceite pelos mortos e os vivos em comunhão com os santos. A Vítima do Sacrifício Supremo torna-se uma bênção para a Igreja que, num gesto final, eleva a hóstia e o cálice novamente no desejo de, por Cristo, dar glória a Deus. O Cânon inteiro transmite o sentido de sacrifício mais do que o óbvio. O Filho, que livremente se ofereceu para reconciliar os pecadores com o Pai, restabelece por este ato a honra e a glória à Trindade na criação e possibilita à Igreja combinar o sacramento do altar num sacrifício de honra, louvor, expiação e invocação a Deus por toda a raça humana.
Um elemento conclusivo entre vários outros ainda pode ser mencionado, porque nem sempre nos damos conta dele. Através do Rito, torna-se também muito aparente que a Sagrada Comunhão possui um significado sacrifical. Certamente, os traços de um banquete, seguindo o molde da Última Ceia, são mais marcantes nesta última parte da cerimônia, mas a preparação para isto, pelo sacerdote e pelo povo, mostra que até o banquete da comunhão toma a forma de continuação do sacrifício. A Oração do Senhor, não uma oração de comunhão, mas um paralelo ao prefácio e, portanto, parte do enquadramento solene do Cânon, é recitada apenas pelo sacerdote. Inicia-se com ela o segmento litúrgico da comunhão sacrifical e, de modo muito significante, inicia-se com a fração da hóstia seguida da invocação do misericordioso Cordeiro de Deus, que pouco antes foi sacrificado. Em duas das subsequentes orações silenciosas que preparam para a comunhão do sacerdote, o Corpo e o Sangue de Cristo são mencionados, cuja separação sacramental o Papa Pio XII identificou como o sinal do sacrifício. Uma vez mais, o assistente faz uma confissão pública dos pecados, seguida de duas absolvições para preparar os fiéis para a recepção do Cordeiro imolado, que é solenemente mostrado e anunciado como aquele “que tira os pecados do mundo”. Até a forma secular de comungar ajoelhado e na boca revela que o banquete não é mundano e que pertence ao rito sacrifical como um todo. A oração supracitada, anterior à bênção final do sacerdote, recapitula como num sumário este teor sacrifical de toda ação da Missa e reafirma seu efeito expiatório: “tornai este sacrifício, que eu acabo de oferecer, digno de ser aceito por vós e, pela vossa misericórdia, seja causa de propiciação para mim e para todos aqueles por quem o ofereci”.
Não pode haver dúvida sobre a natureza sacrifical do Rito Romano, que poderia ser mostrada ainda em facetas mais detalhadas, mas que já aparece com clara evidência durante o ofertório, o Cânon e a Sagrada Comunhão. O Rito Clássico anuncia nitidamente que o núcleo da liturgia sacramental da Igreja é o Sacrifício da Cruz, e isto com tal precisão que todos aqueles que historicamente rejeitaram a identidade entre o Sacrifício do Altar e o Sacrifício da Cruz finalmente se viram constrangidos a rejeitar a Liturgia da Missa Católica como um todo. Esta inequívoca afirmação sacrifical, por outro lado, parece também ser a razão por que tantos fundaram a fé em Cristo e em sua redenção simplesmente por participar do Santo Sacrifício da Missa. O surpreendente fenômeno de pessoas trazidas à fé no amor misericordioso de Deus, através dos mistérios litúrgicos celebrados pela Igreja, não pertence apenas ao passado. Pelo contrário, hoje, o número de jovens, sobretudo, tocados pela graça divina enquanto presentes, mesmo pela primeira vez, no Rito Romano Clássico, é esmagador e crescente todo dia. Este impressionante poder do Rito tira sua influência sobre as almas de sua inconfundível identificação com o supremo sacrifício de Cristo.
Conclusão: culto teocêntrico
Como conclusão de todas estas características do Rito Romano Clássico emerge o seu teocentrismo, que significa sua concentração em Deus como centro, causa e meta. Já as características menos típicas do Rito, como a língua litúrgica e a posição do altar, insinuam o fato de que a esfera humana é transcendida em outro domínio e rumo a uma meta mais alta. O significado dos sinais e detalhes usados é obviamente alterado do nível de nossa experiência cotidiana para o mundo sobrenatural onde todo gesto reflete eternidade. O realismo do Missal Romano não termina nas necessidades básicas da humanidade, mas volta-as para Deus e coloca-as numa visão maior da necessidade de salvação pelo Senhor. O elo com a Divindade é o pensamento-chave do Rito, mesmo se este traz nossas necessidades e desejos para a atenção do Todo-poderoso. A dimensão sacrifical é ainda outra e talvez a mais potente expressão da mesma direção teocêntrica do Rito, dado que o sacrifício restabelece a glória divina em sua Criação donde vem nossa redenção.
O Rito desdobra-se, de fato, num sentido ascendente através das orações preparatórias, a leitura dos feitos poderosos de Deus, o oferecimento da hóstia imaculada até o sublime momento da consagração, quando nossa realidade humana torna-se vaso da sua divina presença. Assim, a recitação do Gloria, do Credo e do Sanctus aparecem como partes coerentes de um evento ritual inteiro, cuja meta é levar o adorador ao encontro último com o Divino, que toca o mundo por ele criado. Também depois da consagração não cessa o foco do Rito na Divindade, porque, que outra meta tem a Sagrada Comunhão se não fazer o fiel tomar parte na divina união entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo? O fato de o momento glorioso da íntima participação ser envolvido pelo humilde gesto da receptividade de joelhos somente sublinha uma vez mais que Deus é a fonte de toda ação na celebração litúrgica. Os movimentos anabático e catabático, que são a direção tanto para cima quanto para baixo do Rito Clássico da Missa, estão intrinsecamente focados na Presença Divina que é primeiramente preparada, depois realizada e, por fim, gratamente recebida.
É inquestionável a importância do Rito para a existência humana, e indiscutível a divinização dos vários sinais e símbolos humanos. Absolutamente não há dúvidas quanto à profundidade antropológica dos elementos humanos do Rito e a dependência que eles têm da natureza humana e seus requisitos. Todavia, é o aperfeiçoamento do lado humano do Rito que repousa no Divino e não o contrário, porque foi Deus que criou a raça humana, foi Deus que estabeleceu o caminho para sua redenção final e foi Deus novamente que formou um Rito adaptado para re-presentar as graças da Redenção durante a história humana. É o mérito do Rito Romano, combinando todas as características discutidas numa sublime harmonia, não omitir nada que contribua para realçar a glorificação do Divino neste mundo, sem em nada diminuir a dignidade do humano. O Rito da Missa continua o Mistério da Encarnação que deve ser encontrado na origem primeira da noção de um sacrifício teocêntrico. Penetrando a realidade humana com poder divino, a Encarnação do Senhor bendito elevou para sempre esta realidade. Assim, tudo no Rito proclama que a celebração do Santo Sacrifício da Missa tenciona abrir nossas mentes, corações e sentidos para o Senhor que é o Rei imortal, o Deus a quem pertencem toda honra e toda glória pelos séculos dos séculos.
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Tradução por Luís Augusto - membro da ARS
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