A centralidade do Cristo Crucificado
"Olharão para aquele que transpassaram"
por Mauro Gagliardi
Consultor para o Ofício das Celebrações Litúrgicas do Sumo Pontífice
Neste tempo da Quaresma, não há como não pensar que o grande mistério do sagrado Tríduo, ao fim destes quarenta dias, nos fará meditar e viver novamente, no hoje da liturgia, a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. Um auxílio neste caminho de conversão está na meditação da centralidade da Cruz no culto e, consequentemente, na vida dos Cristãos. As leituras bíblicas da Missa da Exaltação da Santa Cruz (14 de setembro) apresentam, entre outras coisas, o tema do olhar. Os Israelitas devem olhar para a serpente de bronze erguida num poste para serem curados do veneno das serpentes (cf. Nm 21,4-9). Jesus, no Evangelho desta celebração litúrgica, diz que ele deve ser levantado da terra como a serpente mosaica, para que todos os que nele crerem não pereçam, mas tenham a vida eterna (cf. Jo 3,13-17). Os Israelitas olharam para a serpente de bronze, mas tiveram que fazer uma to de fé no Deus que cura. Para os discípulos de Jesus, entretanto, há uma perfeita convergência entre “olhar para” e acreditar: a fim de obter a salvação, deve-se acreditar naquele para quem olha: o crucificado e Ressuscitado, e viver de um modo consistente com esta visão fundamental.
Esta é a intuição fundamental do uso litúrgico tradicional, de acordo com o qual o ministro sagrado e os fiéis estão juntos voltados para o crucificado. Na época em que a celebração de frente para o povo veio a ser usada, surgiu o problema da posição do sacerdote ao altar, porque agora ele estava dando as costas para o tabernáculo e o crucifixo. Inicialmente, restaurou-se em vários lugares o tabernáculo em forma de caixa colocado sobre o altar separado da parede: desta forma o tabernáculo ficou entre o sacerdote e os fiéis, de modo que, ainda que uns e outros se olhassem, o ministro sagrado e os fiéis poderiam olhar para o Senhor durante a Liturgia Eucarística. Esta solução provisória, todavia, foi logo substituída, principalmente com base na convicção de que esta disposição do tabernáculo gerou um conflito de presenças: não se poderia manter o Santíssimo Sacramento no altar da celebração, porque poria em contradição as diferentes formas da presença de Cristo na liturgia. Enfim, isto se resolveu pelo deslocamento do tabernáculo para uma capela lateral. Havia ainda o crucifixo, para o qual o celebrante continuava dando as costas, já que, como regra, ele permanecera ainda no centro. Isto foi resolvido ainda mais facilmente, provendo que ele fosse agora colocado num lado do altar. Assim, com certeza, o ministro não mais lhe dava as costas, mas a imagem do Senhor crucificado perdeu sua centralidade e, em todo caso, o problema não foi resolvido, consistindo no fato de que o sacerdote ainda não podia “olhar para o Crucificado” durante a liturgia.
As normas litúrgicas, estabelecidas para a corrente Forma Ordinária do Rito Romano, permitem colocar o crucifixo e o tabernáculo em posições separadas, entretanto isto impede uma discussão continuada sobre a maior conveniência de sua colocação no centro, como deve ser para o altar. Isso é verdade de modo especial para a imagem do Crucificado. A Instrução "Eucharisticum mysterium", de fato, afirma que “em razão do sinal” (ratione signi, n. 55), é melhor que sobre o altar em que a Missa é celebrada não seja posto o tabernáculo, porque a presença real do Senhor é fruto da consagração e deveria ser vista como tal. Isto não exclui que o tabernáculo como regra permaneça no centro do edifício litúrgico, especialmente onde há a presença de um altar antigo, que esteja agora atrás do novo altar (ver n. 54, no qual entre outras coisas se fala da licitude da colocação do tabernáculo no altar voltado para o povo). Ainda que esta seja uma questão complexa e venha a requerer uma mais profunda reflexão, alguém provavelmente pode reconhecer que mover o tabernáculo do altar da celebração versus populum (ou seja, o altar novo) tem alguns argumentos mais em seu favor, uma vez que não se baseia apenas no conflito das presenças, mas no princípio da verdade dos sinais litúrgicos. Mas não se pode dizer o mesmo do crucifixo. Se a centralidade do crucifixo é eliminada, pode resultar que o entendimento comum do significado da liturgia corra o risco de ser distorcido.
É óbvio que o “olhar para” não pode ser reduzido a um mero gesto exterior, feito com a simples direção dos olhos. Diferentemente, é principalmente uma atitude do coração, que pode e deve ser mantida seja qual for a orientação assumida pelo corpo de quem reza e seja qual for a direção a que se olhe durante a oração. Todavia, no Cânon Romano, também no Missal de Paulo VI, há a rubrica que requer que o sacerdote eleve os olhos para o céu logo antes de pronunciar as palavras da consagração sobre o pão. A orientação do espírito é mais importante, mas a expressão corporal acompanha e confirma o movimento interior. Se é verdade, então, que olhar para o Crucificado é um ato do espírito, um ato de fé e adoração, todavia é verdade que o olhar para a imagem do Crucificado durante a liturgia, ajuda e confirma muito mais o movimento do coração. Nós temos necessidade dos sinais sagrados e dos gestos, os quais, não sendo substitutos, favorecem o movimento do coração que anseia por santificação: isto também significa agir liturgicamente ratione signi (em razão do sinal). A sacralidade do gesto e a santificação de quem reza não são elementos opostos entre si, mas aspectos de uma realidade única.
Se, portanto, o uso da celebração versus populum tem certos aspectos positivos, deve-se, todavia, reconhecer também as suas limitações: em particular o risco de criar um círculo fechado entre o ministro e os fiéis, que relega a segundo plano logo Aquele para quem todos devem olhar com fé durante o culto litúrgico. É possível ir contra os riscos fazendo voltar à oração liturgia a sua orientação, particularmente quanto à Liturgia Eucarística. Enquanto a Liturgia da Palavra tem sua forma mais apropriada com o sacerdote voltado para o povo, parece pastoral e teologicamente mais apropriado usar a opção – reconhecida pelo missal de Paulo VI em suas várias edições – de continuar a celebrar a Eucaristia voltado para o Crucificado. Isto pode ser feito, na prática, de vários modos, inclusive colocando a imagem do Crucificado no centro do altar da celebração versus populum, de modo que todos, sacerdote e fiéis, possam olhar para o Senhor durante a celebração de seu Santo Sacrifício. No prefácio para o primeiro volume de seu Gesammelte Schriften [opera omnia], Bento XVI disse que estava contente por estar ganhando mais e mais espaço uma proposta que ele fez em seu livro Introdução ao espírito da Liturgia. Isto, como o Papa escreveu, consiste em sugerir “que não se proceda com novas transformações, mas simplesmente colocando a cruz no centro do altar, para a qual sacerdote e fiéis possam olhar juntos, para serem guiados neste caminho para o Senhor, a quem todos nós rezamos juntos”.
(© L'Osservatore Romano - 9/10 Março 2009)
Tradução para o português por Luís Augusto - Membro da ARS
Nota pessoal: Eu acrescento aqui algumas passagens do referido livro do papa Bento XVI (no tempo Cardeal Joseph Ratzinger).
“Cada vez menos é Deus que se encontra em destaque, cada vez mais importância ganha tudo o que as pessoas aqui reunidas fazem e que em nada se querem submeter a um ‘esquema prescrito’. O sacerdote que se volta para a comunidade forma, juntamente com ela, um círculo fechado em si. A sua forma deixou de ser aberta para cima e para frente; ela encerra-se em si própria. Voltar-se em conjunto para o Oriente, não era uma ‘celebração da parede’ e não significava do sacerdote ‘virar costas ao povo’: no fundo, isso não tinha muita importância. Porque da mesma maneira como as pessoas na Sinagoga se voltavam para Jerusalém, elas voltavam-se aqui em conjunto ‘para o Senhor’. Tratava-se – como foi expresso por um dos presbíteros que elaboraram a Constituição Litúrgica do Vaticano II, J. A. Jungmann – de uma orientação comum do sacerdote e do povo, que se entendiam unidos na caminhada para o Senhor. Eles não se fecham no círculo, não se olham uns aos outros; são um povo que se põe a caminho para Oriens, rumo a Cristo vindouro que se aproxima de nós. (...)
É essencial voltar-se em conjunto para Oriente na oração eucarística. Não é que o olhar para o sacerdote seja de importância, é o olhar comum para o Senhor. Não é o diálogo que está agora em causa, mas a adoração comum, a partida para o futuro. Não é o círculo fechado que corresponde ao que está a acontecer, mas sim a partida em conjunto, que se manifesta pela direção comum a todos. (...)
Onde não é possível voltar-se coletivamente para o Oriente, pode a cruz servir como Oriente interior da fé. Ela deveria encontrar-se no meio do altar, sendo o ponto de vista comum para o sacerdote e para a comunidade orante. (...) Considero as inovações mais absurdas das últimas décadas aquelas que põem de lado a cruz, a fim de libertar a vista dos fiéis para o sacerdote. Será que a cruz incomoda a Eucaristia? Será que o sacerdote é mais importante do que o Senhor? Este erro deveria ser corrigido o mais depressa possível, não sendo precisas para isso nenhumas reconstruções. O Senhor é o ponto de referência.”
(Joseph Ratzinger, Introdução ao espírito da liturgia, Capítulo III – O altar e a orientação da oração na Liturgia)
Por Luís Augusto - membro da ARS
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