"O Antigo Missal Romano: perca e redescoberta" - parte 4/4
Antes das mudanças, toda uma coroa de gestos reverentes tinha se acumulado em torno do sacramento do altar, e estes gestos davam um sermão eloquente, recordando constantemente o sacerdote e o povo da misteriosa presença do Senhor no Pão e no Vinho consagrados. Podemos ter certeza disto: nenhuma doutrinação teológica da parte dos chamados teólogos “iluminados” fez tão mal à crença dos católicos ocidentais quanto a comunhão na mão. Isto imediatamente aboliu todos os antigos cuidados quanto às partículas da Hóstia. É impossível, então, receber a comunhão na mão de modo reverente? Claro que é possível. Mas uma vez que a etiqueta da reverência existe e tem tido seu benefício, sua elevada influência sobre a consciência do fiel, é lógico que a retirada da etiqueta deu um claro sinal (e de modo algum apenas para os simples crentes). Que sinal foi esse? Que o grau de reverência de antes não era requerido. Isto por sua vez, logicamente, produziu a convicção — uma convicção que não se fez explícita inicialmente — de que ali não havia nada presente a que se devesse respeito.
Como eu disse, estas coisas foram o resultado da funesta combinação da reforma litúrgica com o Zeitgeist político do Ocidente. Absurdamente, este "espírito dos tempos" pediu a democratização do culto católico, como se a Igreja fosse uma organização política como um estado ou um partido político. Na Ásia, pelo contrário, o crescimento da Igreja, seu poder carismático e cheio do Espírito parece não ter sido minado pela reforma; todo católico deve ser grato de todo o coração por isto. Onde o fogo queima, este pode ser dado aos outros. Não seria a primeira vez na história da Igreja em que territórios de missão retransmitiriam a fé para terras originalmente cristãs que a perderam. Depois da queda do Império Romano, a França foi recristianizada pelos monges irlandeses, que por sua vez devem sua cristandade aos missionários egípcios. Desta forma a lei da mutualidade foi cumprida, pelos irmãos que se revigoraram na fé. Mas também devemos lembrar do verso do poeta John Donne "nenhum homem é uma ilha" – neste sentido: na Igreja universal não há “ilhas de bem-aventurados” e nem lugares que são poupados das venturas e desventuras do corpo mais amplo por longo prazo. A crise no corpo mais amplo da Igreja alcançará todas as partes um dia; devemos estar preparados e equipados para isto. Tais regiões que nunca produziram os sintomas da queda e da debilidade devem perguntar as causas de tal decadência e o que pode ser feito para evitá-las. O ataque à herança litúrgica pela reforma da Missa continua sendo um problema, no sentido estritamente filosófico do termo, porque criou uma situação que não tinha solução óbvia. O povo diz "problemas não têm solução, só uma história". E esta história do problema da reforma litúrgica apenas começou. Mesmo antes de sua eleição, nosso Santo Padre, o Papa Bento XVI, foi um dos bem poucos bispos que sabiam que a ruptura radical com a tradição representava um grande perigo para a Igreja. Agora, em seu famoso Motu proprio, ele afirmou que o Rito Tradicional da Igreja nunca foi proibido porque, por sua própria natureza, não o poderia ser. O Papa não é o mestre da liturgia, mas seu protetor. A Igreja nunca abandona seus ritos herdados, os quais considera uma herança espiritual. Pelo contrário, ela exorta os fiéis a estudá-los e a descobrir, aqui e agora, os seus tesouros ocultos.
O Papa não teve nenhuma intenção de ignorar o passado – o que seria inútil em todo caso – e nem fingiu que os últimos quarenta anos não aconteceram. Ele tomou uma decisão que era almejada, sobretudo, para reconciliar o partido da reforma com os defensores da tradição católica. Segundo o estabelecido pelo papa, há agora um único Rito Romano em duas formas, a "ordinária" e a "extraordinária". As duas formas estão lado a lado numa relação de igualdade. Qualquer uma destas formas pode ser celebrada por qualquer sacerdote sem nenhuma permissão episcopal. Elas se referem entre si de tal modo que o celebrante da forma nova (a ordinária) deve aprender da forma tradicional (a extraordinária) como a tradição da Igreja entende a Santa Missa. O papa exortou a Igreja a reexaminar os antigos livros dos ritos e a aprender, dos padres e santos dos séculos passados, como realizar a solene obra de fazer Deus presente. Todos somos chamados, então, a dar graças pelo resgate do Missal tradicional, que estava quase perdido, e a abri-lo – talvez mesmo “ao cair da tarde” (cf. Mt 20,1-16) – e ler como a Igreja, e todo os povos fieis a quem devemos a nossa fé, costumavam rezar. Talvez também nós possamos tentar rezar como eles rezaram. Não deveríamos esquecer que este foi o Missal dos papas romanos; ele foi prescrito para toda a Igreja no Concílio de Trento. Por quê? Porque, com absoluta certeza, não continha erro algum, nem a mínima possibilidade de equívoco. Na grande crise da Reforma ele foi considerado uma espécie de Arca de Noé espiritual para a Igreja, salvando-a do dilúvio da apostasia universal.
Descubramos, pois, o Salmo Iudica (Sl 42), com que a Missa tradicional inicia aos pés do altar, preparação ímpar para o rito. Somos convocados a deixar para trás nossas preocupações individuais, cotidianas, para nos voltarmos deste mísero mundo e expulsarmos nossas ansiedades, nossos cuidados e nossas dúvidas profundas. Estamos prestes a subir ao santuário do Senhor, sobre o monte do seu templo. Este Salmo nos convida para a Missa como para uma peregrinação, na qual deixamos para trás tudo o que se torna obstáculo à nossa oração. Em seguida, o sacerdote faz sua confissão dos pecados e a assembleia ouve-o em silêncio antes de rezar para que os pecados dele sejam perdoados. Então a assembleia faz sua própria confissão dos pecados para o sacerdote. De fato, a confissão dos pecados só faz sentido nesta forma dialogada, porque uma confissão precisa de alguém que, enquanto escuta, não esteja falando ao mesmo tempo. Descubramos o grande Credo de Constantinopla, que foi formulado para esclarecer o de Nicéia e repelir os erros do Arianismo. Bem como a Igreja, quando foi ameaçada pelo Arianismo, precisamos novamente da profissão de fé que diz que Jesus é "Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro". Na Alemanha, pelo menos, este Credo desapareceu quase por complete do culto, bem como a genuflexão ao artigo central de nossa fé: "et incarnatus est de Spiritu Sancto ex Maria virgine et homo factus est". Com espanto e admiração leiamos as Orações, especialmente as dos Domingos depois de Pentecostes, muitas das quais foram compostas pelo próprio São Jerônimo. São obras-primas de retórica [oratória], formulando verdades teológicas que nutrem a meditação mesmo fora da Missa, e dando voz, de modo singular, ao relacionamento cristão entre Deus e o homem. Uma das maiores percas na reforma da Missa é a perca das orações do Ofertório, durante as quais as oferendas veladas são trazidas para o altar e o sagrado evento da morte sacrifical do Senhor tem seu início. Estas orações vieram de tempos antigos; elas falam, pela primeira vez na história humana, da dignidade do homem, uma dignidade dada por Deus a estas suas criaturas desde as origens, dignidade esta que foi maravilhosamente renovada pela morte sacrifical de Jesus. A Epiclese também é da maior importância: nela o Espírito Santo é invocado sobre os dons. A Igreja Oriental considera esta oração como tendo um efeito especial no ato de transformar os dons; mas a Igreja Ocidental, também, sabe que é o Espírito Santo que trará o milagre da transubstanciação. Então vem o Cânon Romano, que ainda está contido no novo missal, embora só seja rezado em poucos lugares hoje em dia. O Cânon Romano, listando todos os santos da cidade de Roma, une todos os oferecimentos da Missa com Roma, com o Papa e, portanto, com a Igreja universal. Desta forma, aqueles que têm a Missa em comum, vêm de sua terra natal e tornam-se cidadãos de Roma, membros da Igreja que abraça o mundo inteiro. Numa oração muito significante o Cânon Romano une o presente sacrifício do altar aos sacrifícios de todos os homens, em todos os tempos: ao sacrifício de Abel (representando a revelação em sua primeira forma), ao sacrifício do Rei Melquisedec (que não era judeu e, assim, representa os sacrifícios dos povos não-judeus) e ao sacrifício de Abraão, o qual – de forma terrivelmente clara - antecipa o sacrifício da Cruz, este drama que acontece entre o Pai e o Filho.
Só posso dar uma indicação muito superficial da riqueza de formas a ser encontrada na linguagem ritual que passou por milhares de anos de refinamento. O antigo Missal está cheio de referências e alusões, das quais apenas depois de décadas de uso se compreendeu bem o significado. A meta dele é mudar a vida dos fiéis. E isto requer uma meditação a longo prazo. Não se trata de um instrumento para imediata propaganda; seria mais algo a que se deve dar tempo para penetrar a alma. E o que dizer da linguagem do Missal? Os fiéis de língua inglesa, pelo menos, logo estarão possibilitados a usar traduções corretas que substituirão as simplificações e falsificações tão danosas que se encontram atualmente [nt: a tradução mais fiel do Missal em inglês saiu há alguns meses e deve entrar em vigor no dia 27/11/11]. Outras nações, onde a arrogância modernista está mais estabelecida, ainda terão que esperar muito por isto. É, por isto, da maior importância para os sacerdotes, bem como para os fiéis, conhecer a língua-mãe da Igreja, na qual os ensinamentos da Igreja se preservaram de um modo claro e conciso. Uma língua sagrada possui a vantagem de não ser a língua de nenhuma nação particular. Adentramos esta língua como que entrando num edifício sagrado; ela respira uma oração que é mais poderosa que a oração individual. Ela reza uma oração que é pré-existente, que é anterior a nós; temos apenas que nos associarmos a ela, unirmo-nos a ela. A Igreja a que pertencemos está acima do tempo e dos povos; e ela está presente nesta língua sagrada. Pode ser que a crise presente esteja nos presenteando com uma oportunidade: não deveríamos nos permitir afogarmo-nos numa rotina piedosa, mas devemos redescobrir a forma visível da Igreja, aprender a amá-la e a defendê-la como um precioso tesouro que pensávamos ter se perdido: para nossa grande surpresa e alegria, encontramo-lo novamente e percebemos, talvez pela primeira vez, que nada o pode substituir.
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Por Luís Augusto - membro da ARS
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