"O Antigo Missal Romano: perca e redescoberta" - parte 1/4

Pax et bonum!

Há algumas semanas encontrei uma palestra de Martin Mosebach, leigo católico e renomado escritor alemão, que foi proferida numa Convenção de Liturgia da Arquidiocese de Colombo, no Sri Lanka. Traduzi-a.
Não é um texto de um "tradicionalista radical", tirado de sites "ultra-tradicionalistas" (como alguns gostam de apelidar maldosamente), mas é uma palestra de um encontro arquidiocesano.
Só lembrando: o arcebispo de Colombo é Sua Eminência o Cardeal Albert Malcolm Ranjith, que já foi secretário da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos.
O texto parece carregar um tom um tanto dramático, mas no fim das contas se descobre que trata da verdade, ainda que possivelmente aumentada, embora em pouquíssimos detalhes. 
Por ser grande, postei em quatro partes. Pode-se vê-lo integralmente em pdf no Gloria.TV.
Muito bom, muito atual, muito realista!

Original: http://www.archdioceseofcolombo.com/news.php?id=1076

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ARQUIDIOCESE DE COLOMBO – SRI LANKA
Convenção de Liturgia
Aquinas University College
01 a 03/09/2010

O Antigo Missal Romano: perca e redescoberta
Por Martin Mosebach

- 02/09/2010 -

A história da Santa Igreja Católica é cheia de mistérios; e há tanto mistérios bons quanto mistérios maus. O Apóstolo Paulo, de maneira significativa, fala do mysterium iniquitatis, o “mistério da iniquidade”. Há séculos, a chamada Teodiceia, ou seja, a questão do “como pode haver o mal na Criação que Deus fez boa” constantemente esteve bem inflamada. É uma questão que surge de um profundo mal-estar, de uma profunda aflição. O “mistério da iniquidade”, de São Paulo, reconhece a angústia causada pela existência do mal, mas absolutamente se nega a dar uma resposta a isto. Eu também não direi se o mistério do qual estou para falar é bom ou mau, ou uma mistura indissolúvel de ambos os elementos. Por que sou reticente neste ponto? Cada um dos grandes eventos da história tem consequências que geram ondulações que se propagam pelos séculos, e estas consequências estão constantemente mudando o seu aspecto. Algo que é uma maldição num século pode tornar-se uma bênção num outro posterior. Mas é também o caso de doenças que podem permanecer enquanto mudam as suas manifestações.

Estas observações introdutórias, devo admitir, expressam uma certa hesitação de minha parte. Isto é porque estou profundamente ciente da seriedade do meu assunto. Eu desejo falar-vos sobre uma tremenda perturbação na história da Igreja desde o Concílio Vaticano II. Pois foi então que algo inteiramente novo aconteceu: algo que, até então, era impensável. Sempre que um católico ouvir a palavra “novo” em relação à Igreja, ele deve ficar de guarda. O que é realmente “novo” na história do mundo é a Encarnação, o Deus tornar-se homem, e isto já teve lugar. Ao mesmo tempo, esta Encarnação nunca cessa de se apresentar a nós como algo novo: é algo tão novo que não podemos compreender plenamente. Ela aponta para um tempo depois do fim dos tempos, quando o mundo será recriado. Ela antecipa esta nova criação, mas, até isto, a Encarnação aloja-se no corpo do mundo como um fatigante e irritante espinho.

Ao lado de Jesus Cristo nada pode ser “novo”, a menos que esteja completamente cheio dele. Pelo contrário, algo que tenta modificar, intensificar, retocar ou remendar o que foi revelado uma vez por todas sempre será duvidoso e possivelmente até perigoso, por mais interessante e atrativo que possa soar. Há um axioma cultural que afirma “as coisas antigas são melhores”: certamente esta é a experiência de toda cultura, toda civilização. A cultura está necessariamente ligada à confiança na tradição: a cultura consiste na expansão de uma breve vida humana nos largos horizontes do passado e do futuro. A cultura dá ao povo a oportunidade de assimilar as experiências das gerações anteriores e de transmiti-las às gerações que virão. Com base nas experiências das gerações passadas, árvores podem ser plantadas agora, de modo que, eventualmente, as gerações que virão serão capazes de aproveitar os seus frutos. O que é antigo provou que é capaz de sobreviver por várias gerações. Não se afundou no esquecimento, como coisas que não têm valor e que são mortas, mas demonstrou sua fecundidade pelos séculos e até mesmo pelos milênios. Como observou Goethe, o grande poeta alemão: “Somente o que é frutífero é verdadeiro”. Aquilo que é antigo e que permaneceu como uma realidade viva pode até ser a forma visível da verdade, no passado e no presente.

Os cristãos, porém, têm uma razão a mais para se agarrar ao que é antigo e tradicional. A crença cristã na divindade de Jesus Cristo não pode ser equiparada aos mitos pagãos, existentes no eterno presente, não envolvidos na história. Os cristãos acreditam que o Criador do Céu e da Terra tornou-se homem num momento particular da história, no primeiro período do Império Romano e na província mais desprezada do Império. No Credo, um dos textos cristãos mais sagrados, os cristãos pronunciam o nome do Filho de Deus e de sua Santa Mãe junto com o nome de um medíocre e falido oficial provincial romano. Foi Pôncio Pilatos que, por causa de sua fraqueza, associou-se à obra da Redenção. Ele deve sua fama imortal à vontade dos Padres do Concílio de Niceia, que determinaram que deveria fazer parte da fé cristã o fato de Jesus ter sido uma figura histórica. Deus tornou-se homem, e ser homem significava ter um país, uma língua, tradições, e ter nascido num contexto cultural e político. Jesus era um sujeito judeu e também romano. Quando a Igreja subsequentemente incorporou características judaicas e romanas, continuava-se, de certa forma literalmente, a Encarnação. E todas essas perpetuações da Encarnação hão de ser a missão da Igreja até o fim dos tempos.

Todos os cristãos são, portanto, obrigados a olhar para o futuro, para o retorno do Senhor. Mas, a fim de saber quem é este que retornará, deve-se olhar para trás, para o passado. E o "passado" aqui não denota o abismo tenebroso dos primórdios da raça humana, mas as décadas dos reinados dos imperadores Augusto e Tibério. Este foi o tempo daqueles que testemunharam a glória do Senhor e foram até à morte por causa de sua fé. E sua fé era mais um conhecimento do que uma crença. Foram eles que no-la transmitiram. Nenhum sacerdote cristão e nenhum leigo cristão, dando a razão de sua fé cristã, pode dar maior ou melhor explicação do que aquela dada por São Paulo, quando diz: "Eu vos transmiti aquilo que recebi". Ao explicar sua fé, os cristãos são parte de uma corrente que une o presente e o passado. O gesto corporal de impor as mãos, que não pode ser substituído por nenhum espiritualismo, une os cristãos aos Apóstolos de antigamente. O que aprendemos deles é que a presença de Cristo é a vida de sua Igreja, e que esta não vem por meio de auto-sugestão, meditação ou disposições interiores: ela acontece por meio da figura transformada do Cristo Encarnado, como quando ele passa, abençoando o povo, ao impor-lhe as mãos, irradiando um poder miraculoso de suas vestes; ao ter os pés lavados pela mulher que era uma pecadora e ao serem eles atravessados pelos pregos; ao chorar por Lázaro e ao assar um peixe para seus discípulos. Jesus ensinou aos seus discípulos que deveriam constantemente recriar a sua presença. E esta presença era infinitamente mais preciosa que o seu ensinamento, porque continha não só a integridade do ensinamento, mas muito, muito mais: coisas das quais só se pode aproximar pela contemplação, não pela compreensão intelectual. Os seus Apóstolos vieram a tornar-se seus instrumentos, tornando-o presente, presente no mais alto e mais concentrado momento de sua vida terrena, isto é, sua morte sacrifical na Cruz.

Os primeiros cristãos sabiam naturalmente que o culto legado a eles pelo Senhor era muito mais que uma repetição da Última Ceia. Eles sabiam que a Última Ceia era somente um sinal da obra real da redenção que estava para se efetivar em sua morte angustiante na Cruz. Eis porque eles revestiram este culto das mais belas e sublimes formas de oração e sacrifício que a humanidade já desenvolveu, nos milhares de anos antes da vinda do Redentor. Estas formas não tinham autor; elas não foram concebidas por homens sábios: elas cresceram da sensibilidade de todo o povo que desejava adorar a Divindade. Apenas uma coisa distinguia este novo sacrifício cristão de seus antecedentes em todas as religiões: tornar presente o sacrifício de Jesus não era tanto obra de homens piedosos e religiosos, mas obra do próprio Deus. Esta foi uma obra realizada por Deus, para o bem da humanidade. Era uma obra que os homens, mesmo os mais religiosos, nunca poderiam realizar por si mesmos. Só poderiam achegar-se a ela pela graça do Redentor. Este é um axioma central do culto cristão, sem o qual ele se torna ininteligível: ele não é uma obra humana e, portanto, não lhe é permitido aparecer como uma obra humana. Ele deve ser visto como devedor de sua origem não à vontade do homem, mas à vontade de Deus. Para os católicos isto é incontestável. Mas precisamos reconhecer que em várias partes do mundo católico, e particularmente nos territórios que foram os alicerces históricos da Igreja Católica, este axioma não é mais levado em conta.

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Por Luís Augusto - membro da ARS

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