"O lugar do sacerdote e do altar na liturgia católica" - por Pe. Uwe Michael Lang
Pe. Uwe Michael Lang |
O fato de o sacerdote, frequentemente, celebrar o sacramento da Eucaristia de frente para os fiéis é uma das mudanças mais marcantes que afetaram a liturgia católica nas últimas décadas. Essa mudança foi acompanhada pela utilização de altares isolados que, muitas vezes, acarretaram transformações tão radicais quanto discutíveis em igrejas marcadas pelo passado histórico. A impressão que se instalou - não só na opinião pública, mas também no interior da Igreja – foi a de que a posição versus populum do celebrante na Missa era uma obrigação prescrita pela reforma da liturgia introduzida pelo Concílio Vaticano II. No entanto, a leitura dos documentos conciliares e pós-conciliares demonstra que não é exatamente assim. Na Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia (Sacrosanctum Concilium), não se põe em discussão a celebração versus populum nem a construção de novos altares. As normas litúrgicas atualmente em vigor consideram desejável que o altar-mor de uma igreja seja afastado certa distância da parede para permitir que, ao redor dele, se dê uma volta e para que uma celebração de frente para o povo seja possível. Contudo, em nenhum caso, afirma-se que a orientação do sacerdote de frente para o povo deva ser considerada, sempre e por todos, como a melhor forma de celebrar a Missa. Muitas pessoas, desde os anos sessenta, expressaram uma opinião crítica acerca da expansão do modo versus populum de celebrar a liturgia. Ao lado do liturgista de Innsbruck, o jesuíta Josef Andrea Jungmann, e do oratoriano francês Louis Bouyer, pode-se mencionar Joseph Ratzinger - que era então um jovem teólogo que participou do Concílio e que, posteriormente, veio a tornar-se o Papa Bento XVI.[1]
A orientação do celebrante de frente para o povo durante toda a cerimônia eucarística, na realidade, jamais foi oficialmente prescrita e nem mesmo introduzida pela reforma litúrgica. Em geral, os argumentos tirados da história da liturgia e invocados em favor da posição versus populum são referências à presumida prática litúrgica da Igreja dos primeiros séculos. Os argumentos propriamente teológicos, por sua vez, são derivados da noção de participatio actuosa, a "participação ativa" dos fiéis na liturgia, que havia sido apresentada pelo Papa São Pio X e, posteriormente, colocada no centro da Constituição Sacrosanctum Concilium. Nos últimos anos, contudo, uma nova abordagem crítica surgiu. Ela exige um aprofundamento teológico deste importante conceito em face da interpretação que foi dada no período seguinte ao Concílio. Discute-se se o fato de fiéis e sacerdote estarem permanentemente face a face seja benéfico para uma verdadeira participação dos fiéis – tal como exigida pelo Concílio Vaticano II. Em seu importante livro sobre o Espírito da Liturgia, o Cardeal Ratzinger faz uma distinção fundamental entre a Liturgia da Palavra e a Liturgia Eucarística em sentido estrito: “O papel secundário das ações exteriores deveria ser claramente ressaltado. Aliás, quando vem o essencial – a oratio – a ação deve desaparecer totalmente. Como também deve evidenciar-se que, somente a oratio é o essencial, por ser só ela que proporciona espaço para a actio de Deus. Quem compreendeu isto, entenderá facilmente que agora não se trata de olhar o sacerdote, nem de ver o que ele faz, mas sim olhar juntos o Senhor e aproximar-se dele”.[2]
Nesse mesmo livro, o Cardeal Ratzinger também destacou a natureza trinitária da liturgia: cada celebração da Eucaristia é uma oração ao Pai, por Cristo, no Espírito Santo. Qual a melhor forma de exprimir esse comportamento interior através dos gestos litúrgicos? Ora, quando falamos com alguém, nós nos voltamos naturalmente para essa pessoa. Isto também se aplica às cerimônias litúrgicas, o que implica que a oração do sacerdote e dos fiéis deve ser orientada a seu divino destinatário.[3] As expressões "de frente para o povo" ou "voltado para o povo", correntemente empregadas, não levam em consideração Aquele a quem se dirigem a prece e o sacrifício: o Senhor.
Quanto à dimensão histórica da questão, devemos, em primeiro lugar, observar que, desde os primeiros tempos, os cristãos se voltam para o leste, em direção ao sol nascente, para orar. Considerava-se, tanto para a oração privada quanto para a celebração litúrgica, que não se devia mais continuar a seguir o antigo costume judaico de rezar voltado para a Jerusalém terrestre, mas que era necessário voltar-se para a nova Jerusalém, a cidade celeste, que o Senhor ressuscitado construiu para acolher os remidos quando retornar para julgar o mundo. O sol nascente foi considerado pelos primeiros cristãos como uma expressão adequada da esperança da parusia, do retorno de Cristo em sua glória. A orientação para o Oriente tornou-se fundamental para a liturgia e para a construção das Igrejas durante os séculos seguintes. Até o fim da Idade Média, as absides das igrejas e seus altares deveriam ser orientados para o leste, onde isso, naturalmente, fosse possível. Desta maneira, o simbolismo cósmico da Missa revestiu-se de uma forma concreta.
Mesmo em lugares em que, provavelmente, foi regra que o sacerdote ficasse de frente para o povo, acredita-se que, em algumas igrejas dos primeiros séculos, cuja entrada era orientada para o leste, em particular em Roma e no Norte da África – o contato visual [entre o sacerdote e os fiéis] não existia, pelo menos durante a Oração Eucarística, uma vez que todos oravam de braços erguidos e com olhar voltado para o céu. Na Antiguidade e no início do período medieval seria estranho associar a participação efetiva de todos na ação litúrgica ao fato de se poder observar as ações do celebrante. Em todo caso, a celebração versus populum, como atualmente se entende, era desconhecida na Antiguidade cristã. O fato de citarem como exemplo desta forma de celebrar a prática das basílicas romanas – como a de São Pedro - e a orientação dessas igrejas, seria um anacronismo.[4]
A orientação do padre e da comunidade para o leste, na liturgia eucarística, cujo uso já é atestado desde o início da história, não é um mero acaso. Não se trata apenas da transmissão de um hábito, mas de uma orientação consciente para Deus na oração, ligada intimamente ao sacrifício eucarístico. Guiados pelo sacerdote, o povo de Deus, em peregrinação, põe-se em oração diante do Senhor. A incontestável preferência que se deu à orientação comum da oração reside nesse movimento coletivo de oferta, através do qual se enfatiza a dimensão sacrifical da Eucaristia. Por meio de Cristo, nós apresentamos uma oração e uma oferenda [ao Pai] e, à frente da procissão pela qual se expressa aquele movimento de oferta (prosphora, oblatio) está o sacerdote, que se volta com os fiéis em direção ao Senhor. A tese de uma relação objetiva entre o caráter sacrifical da Eucaristia e a orientação comum da oração certamente exigiria uma análise detalhada, mas é bastante plausível. A experiência pastoral das últimas décadas mostra que esta relação existe: é difícil contestar o fato de que a celebração versus populum está acompanhada por um decréscimo acentuado da compreensão da Missa como oferta e atualização do único sacrifício de Cristo. Isso não quer dizer que a orientação da celebração seja a única causa dessa mudança. Mas entre os pioneiros do movimento litúrgico do século XX, o principal motivo para a introdução da celebração versus populum era tornar mais presente a compreensão, supostamente esquecida, da Eucaristia como banquete sagrado. É fácil constatar que esta dimensão tem sido sublinhada de forma unilateral, em detrimento da afirmação de que a Eucaristia é "um sacrifício visível, tal como a natureza do homem o exige".[5] Bouyer vê na oposição entre a compreensão da Eucaristia como banquete e a compreensão da Eucaristia como sacrifício um dualismo artificialmente fabricado, que parece absurdo aos olhos da tradição litúrgica 6. A catequese mistagógica, que é sem dúvida muito importante, não poderá recuperar essa perda enquanto o caráter sacrifical da Missa não encontrar sua correspondente expressão na forma litúrgica. Em outras palavras, todos os discursos bem intencionados sobre o mistério da Eucaristia, o sacrifício de Cristo e da Igreja, perdem-se no tempo quando as celebrações são acompanhadas de sinais que os contradizem.
Como argumento a favor da celebração versus populum, muitas vezes se diz que tal posição é importante para o diálogo entre o sacerdote e a assembléia. Não se trata aqui de contestar o papel de tal diálogo em certas partes da liturgia – que tem o seu lugar – mas de ressaltar que o princípio que rege esse intercâmbio é o diálogo entre todo o povo reunido, incluindo o sacerdote, com Deus. O liturgista francês Marcel Metzger chegou, inclusive, a dizer que a celebração da Missa versus populum não exprime a verdadeira forma da Igreja e do ofício litúrgico. O sacerdote não celebra a Eucaristia para o povo, mas é toda a comunidade que celebra voltada para Deus Pai, por Jesus Cristo, no Espírito Santo. Este diálogo entre Deus e seu povo é valorizado de maneira notável quando o celebrante está voltado para a abside.
Uma vez que os homens estão relacionados com o espaço e o tempo, suas orações e louvores a Deus se realizam em locais concretos e momentos específicos e "se encarnam", em certo sentido. Para Metzger, a orientação comum na oração é a maior expressão desta representação espacial de Deus.[7] O que é importante aqui não é a orientação para um determinado lugar do céu, mas a explicação sensível da verdadeira forma da Igreja através da orientação comum do sacerdote e dos fiéis em direção Àquele a quem dirigem suas orações. Em resposta à banalização e à dessacralização progressiva da vida litúrgica, todo esforço deve ser empreendido para que se dê prioridade absoluta à contemplação e à adoração do Senhor. Os sacerdotes são servidores humildes e discretos deste mistério - nem mais, nem menos.
A orientação comum da oração na liturgia foi de uso quase universal nas igrejas latinas até muito recentemente. Ela continua a ser a regra nas Igrejas de tradição bizantina, siríaca, armênia, copta e etíope. A tradição litúrgica e a prática atual de todas as igrejas orientais não católicas e da maioria das igrejas orientais católicas conhecem a orientação comum do sacerdote e da assembléia, pelo menos durante a anáfora. O fato de se ter introduzido em algumas igrejas orientais católicas, sobretudo nas da diáspora, a celebração de frente para o povo, deve-se às influências ocidentais do período pós-conciliar. Isto representa para estas igrejas um distanciamento de sua própria tradição, o que ocorre, por exemplo, entre os maronitas e os siro-malabares. Há alguns anos, a congregação romana responsável por este tema ressaltou de maneira muito clara que a celebração da liturgia versus orientem é uma tradição viva, cheia de significado e que foi transmitida desde os tempos mais antigos, bem assim que é importante conservá-la.[8]
A orientação comum de frente para Deus, que implica que todos estejam voltados para o altar – quer a orientação para o leste seja real ou não - é a posição mais adequada para celebrar a Eucaristia em sentido estrito, especialmente, durante o Cânon. Somente durante as partes da liturgia em forma de diálogo, durante a proclamação da Palavra e a distribuição da comunhão, é que o sacerdote deveria voltar-se para o povo. Não se trata de discutir aqui em detalhe como essa proposta poderia ser colocada em prática de maneira concreta. No entanto, permanece a recomendação: o sacerdote deve orar voltado para o altar, especialmente nas igrejas antigas onde um altar principal, cuja importante qualidade estética, muitas vezes, é a característica dominante de todo o espaço. Os suntuosos altares que se encontram nas igrejas ocidentais da idade média e do barroco, bem assim as estruturas absidais do primeiro século ainda preservadas nas igrejas bizantinas e orientais, contribuem para honrar a Deus e fazê-lo presente de modo sacramental, aos olhos dos cristãos reunidos para a oração e para o sacrifício da Missa, a obra da redenção por Ele realizada. Isso porque o altar é, por assim dizer, uma abertura no céu que, longe de fechar o espaço da igreja, permite a entrada, na comunidade reunida, daquele que é o Oriente e, por sua vez, permite a saída desta comunidade da prisão que é este mundo.[9]
Mons. Guido Marini, atual Mestre de Cerimônias do Santo Padre, celebrando versus Deum em altar da Basílica de Santa Maria Maior |
Notas:
1. J. Ratzinger, « Der Katholizismus nach dem Konzil », Auf dein Wort hin. 81. Deutscher Katholikentag vom 13. Juli bis 17. Juli 1966 in Bamberg, Verlag Bonifacius-Druckerei, Paderborn, 1966, pp. 245-264 ; J. A. Jungmann, « Der neue Altar », Der Seelsorger, n. 37, 1967, pp. 374-381 ; L. Bouyer, Liturgy and Architecture, Notre-Dame, Indiana, 1967, trad. française : Architecture et liturgie, Cerf, coll. « foi vivante », 1991.
2. L’Esprit de la liturgie, « Participation active », Ad Solem, Genève, 2001, p. 139.
3. J. Ratzinger, Das Fest des Glaubens. Versuche zur Theologie des Gottesdienstes, Johannes Verlag, Einsiedeln, 1993, pp. 121-123.
4. Sur ce sujet, on peut se référer aux travaux du liturgiste de Ratisbonne Klaus Gamber, même s’il ne sont pas toujours fiables quant aux détails historiques. K. Gamber, Ritus modernus. Gesammelte Aufsätze zur Liturgiereform, Pustet, Ratisbonne, 1972 ; Liturgie und Kirchenbau. Studien zur Geschichte der Meßfeier und des Gotteshauses in der Frühzeit, Pustet, Ratisbonne, 1976.
5. Concile de Trente, 22e session, « exposition de la doctrine touchant le Sacrifice de la messe », chapitre 1.
6. L. Bouyer, postface à Klaus Gamber, Zum Herrn hin ! Fragen um Kirchenbau und Gebet nach Osten, Pustet, Ratisbonne, 1994, p. 74.
7. M. Metzger, « La place des liturges à l’autel », Revue des sciences religieuses, n. 45, 1971, p. 140.
8. Congregatio pro Ecclesiis Orientalibus, Istruzione per l’applicazione delle prescrizioni liturgiche del Codice dei Canoni delle Chiese Orientali « Il Padre incomprensibile », Cité du Vatican, 1996, pp. 85-86 (n. 107).
9. L’Esprit de la liturgie, « Le lieu sacré », pp. 59-60.
Sobre o autor: Uwe Michael Lang. Sacerdote do Oratório de São Filipe Néri, autor do livro Turning towards the Lord: orientation in liturgical prayer (2005) e Oficial da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos e Consultor do Ofício de Celebrações Litúrgicas do Sumo Pontífice. Fonte: Revista Catholica n º 89 – Publicado em 11 de fevereiro de 2010.
Tradução por Edilberto Alves - membro da ARS
Prezados irmãos em Cristo, a Paz!
ResponderExcluirMeu nome é Henrique Sebastião, sou redator de comunicação, designer, ilustrador e blogueiro católico. Atuo na Pastoral da Comunicação da Arquidiocese de São Paulo; sou articulista e editor de uma revista católica chamada Voz da Igreja, que também é um blog. Venho dar-lhes os parabéns pela iniciativa de ste blog.
Os posts são edificantes e instrutivos. Vivemos tempos complicados. E nestes dias de necessária união entre católicos, estou linkando o Associação Redemptionis Sacramentum em meu blog, e venho humildemente pedir também a minha inclusão em vossa lista de links:
www.vozdaigreja.blogspot.com
Abraço fraterno, e a Paz de Cristo!
Henrique Sebastião
vozdaigreja@gmail.com
Olá, que Deus o abençoe!!! Eu, lendo esse artigo, fiquei com uma dúvida, se o CVII não decretou o "Versus Populorum" como algo obrigatório, então como é que se explica o fato de em que muitos lugares, isso é como se fosse uma lei, ou seja, como desenvolveu a ideia de que o Concílio decretou tal "obrigação", mesmo não estando tal decreto presente no Sacrosanctum Concilium (como explica esse artigo)? E outra pergunta: o Missal de Paulo VI era para ser celebrado em "Versus Deum"?
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