"O Antigo Missal Romano: perca e redescoberta" - parte 3/4

A própria reforma do Papa Paulo [VI] teve consequências pesadas, mas a forma com que ela foi levada a cabo, particularmente na maioria das dioceses da Europa e dos Estados Unidos, é que lançou ao lixo tudo o que, no Rito Paulino, ainda tinha ligação com a tradição católica. Neste ano do eixo, 1968, reforma tornou-se revolução. Começou com a liturgia. E aqui podemos ver o papel central dela na Igreja: tudo o mais, a teologia, a pessoa do sacerdote, a constituição hierárquica da Igreja, as orações cotidianas dos fiéis, o edifício da cultura católica, as obras missionárias, e por fim até os artigos centrais da fé, estava intimamente ligado à Liturgia. Com a liturgia, ou todos ficam firmes ou todos caem. A liturgia não era uma forma historicamente condicionada que poderia ser substituída ou adaptada para todas as necessidades cotidianas, sem que sua substância sofresse algum prejuízo. Isto seria óbvio até para as pessoas que equivocadamente pensavam que o amor pela liturgia tradicional era um tipo de esteticismo religioso, moralmente duvidoso. Requisitos pastorais foram citados como os mais estranhos argumentos para a reforma. Um rito severamente simplificado, com orações em vernáculo que eram teologicamente gerais e não desafiadoras no tom, certamente ajudaria a manter as pessoas modernas dentro da Igreja. Até mesmo esta noção deveria ter feito as pessoas se questionarem; em terras de missão da Ásia, por exemplo, com sua civilização avançada, o povo foi acostumado a ritos extraordinariamente ricos em línguas sagradas difíceis por milênios. Recusar a tradição católica para eles seria equivalente a um ato de paternalismo colonialista. Em terras cristãs, contudo, as simplificações dos reformadores tiveram consequências devastadoras. Quando, apesar de muita resistência, a reforma foi posta em prática num último exercício de poder da parte das autoridades romanas centrais, os fiéis começaram a sair das igrejas. Como alguém ironicamente observou: "A reforma da Missa foi desejada para abrir as portas da Igreja para os de fora; o que aconteceu foi que os de dentro correram e fugiram!" O culto solene e hierático foi abolido, e a tentativa foi feita, por assim dizer, para se ir atrás dos fiéis por meio dos sacramentos. Mas eles rejeitaram a proposta. Em áreas inteiras da Europa toda a compreensão dos sacramentos sumiu. O desenvolvimento inteiro foi desconcertante: agora que toda palavra - declaradamente – poderia ser entendida, todo o evento eucarístico tornou-se de algum modo estranho ao povo. A grande obra da Igreja de tornar Deus presente não mais fazia sentido. Ao mesmo tempo, o conhecimento da fé católica se esvaiu. Hoje, na Europa, há muitos católicos que dificilmente sabem rezar o Pai nosso, muito menos o Credo. Muitos têm apenas a noção mais vaga acerca do ensinamento da Igreja.

Um dano terrível foi causado ao sacerdócio católico no alvorecer da reforma. No ocidente, desapareceu a antiga consciência de que, no altar, o sacerdote está agindo in persona Christi. O clero reformado [e remodelado] se redesenhou com linhas elegantemente democráticas. Ele não pode carregar a ideia de que o padre é homo excitatus a Deo (um homem suscitado por Deus do meio da multidão). Um padre moderno sente a distinção entre o laicato e o sacerdócio – uma distinção encontrada nos Atos dos Apóstolos – como um forte incômodo; ele não pode negar esta distinção, então ele tenta esquecê-la. Leigos invadem o santuário, mulheres agem como servas do altar (= coroinhas) (e assim obscurecem o fato de que atualmente os acólitos pertencem à menor categoria do clero). Na Europa, falando de modo geral, os padres abandonaram as vestes clericais. Eles já não querem ser reconhecíveis; eles consideram seu papel no meio da sociedade secularizada uma espécie de fonte de embaraços. Na Alemanha há um dito antigo: "O hábito não faz o monge". Está correto, mas o oposto é igualmente verdade, e temos que entender isto no nosso tempo: "É o hábito que faz o monge". Em outras palavras, é a harmonia entre a forma exterior e a atitude interior que faz o sacerdote católico. Ele deve cumprir sua função in persona Christi de um jeito corporal: deve ser visível e estar ao alcance de todos.

Liturgia, leitourgia no grego, significa "serviço público" ou "serviço em favor do povo". A Oração Litúrgica difere da oração individual. O indivíduo fala com Deus em qualquer língua que ele conhecer e com quaisquer palavras que ele puder, enquanto a Igreja reza em nome dos anjos, dos santos, das almas do purgatório e de todos os vivos na terra. Esta oração de todos e por todos deve ser modelada com uma forma que está aberta ao exame de todos. A Igreja ocidental preocupou-se com a possibilidade de haver um fosso crescente entre uma sociedade consumista, libertária e sem religião e o mundo da fé; nesse sentido tentou suprimir tudo que era específico a ela mesma e que pudesse ofender [ser uma pedra de tropeço] na esfera secular. Ela tentou amparar os princípios do mundo moderno. Resultou que, como alguém disse: “batizaram-se ideias que não tinham se convertido”. Quarenta anos se foram deste jeito e a Igreja ocidental perdeu mais e mais clareza de perfil, tentando mais e mais adaptar-se favoravelmente às ideias de uma sociedade sem religião. Há algo de misterioso e mágico nestes números. O povo de Israel passou 40 anos errante no deserto. A ocupação Comunista na Alemanha Oriental com o seu regime de fantoche também durou 40 anos. 40 anos foram gastos "reformando" a Igreja e quando se completaram estes 40 anos, o fruto tinha amadurecido. Ele estourou e espalhou seu conteúdo de mal cheiro por toda parte. Estou falando aqui dos escândalos de imoralidade que abalaram muitas províncias do ocidente da Igreja. Obviamente, podemos dizer que no presente ambiente, que é hostil à Igreja, os escândalos foram maliciosamente exagerados, distorcidos e generalizados. Mas o que os escândalos revelam acima de tudo é uma Igreja que está muda e desamparada, tendo se secularizado. Tendo cortejado o público descaradamente, já não pode comunicar seu próprio ser; não pode mais comunicar sua realidade central. Quarenta anos de aggiornamento, quarenta anos de popularização e secularização do sacramento do altar, produziram uma catástrofe das mais altas proporções. Não se trata de um exagero. E assim como as pessoas que, desde o início, assistiram o experimento da secularização, com ansiedade e apreensão, não estão agora dizendo presunçosamente “eu não disse?”, não há satisfação alguma em estar no lado correto quando todos temos diante de si este terrível colapso e o esquecimento [banimento da sociedade] da moral da Igreja. Nós percebemos que gerações têm estado abandonadas e perdidas, e que sua reconstrução seria infinitamente dura e laboriosa. Tomar-se-á muito tempo para repor o sangue que jorrou por conta da hemorragia da Igreja ocidental.
Houve antes um tempo, na história da Igreja, em que a fé começou a mudar de habitat. Ela deixou áreas em que já existia e logrou novos territórios em outros lugares. Poucos cristãos vivem hoje nas terras natais das origens da cristandade: Palestina, Egito, Ásia Menor particularmente – lugares onde a jovem Igreja floresceu e em que ocorreu o primeiro importante Concílio. Por que com a Europa cristã seria diferente? O cristianismo viajou por todo o mundo a partir de sua base na Europa. Na Ásia pode ainda ser uma minoria, mas trata-se de uma minoria espiritual e intelectualmente forte, resoluta e pronta para o sacrifício. É uma minoria considerada com respeito pela maioria.

Para mim fica claro que a destruição da tradição católica causou menos danos em regiões que não tinham ligações com o espírito de 1968. Embora estas reformas tenham sido nitidamente contrárias à tradição da Igreja, era possível, obviamente, implementá-las num espírito de devoção e com um coração modelado por esta tradição. Ademais, muitas das mais ofensivas infrações cometidas contra a lei da tradição católica de modo algum estavam enraizadas na reforma do Papa Paulo. Elas cresceram da desobediência que proliferou em toda parte no Ocidente como resultado do colapso estrutural durante o pontificado deste pobre Papa. Uma vez que Paulo VI começou a perceber a extensão da destruição, ele observou com grande emoção que "a fumaça de Satanás entrou na Igreja". O Missal de Paulo VI, por exemplo, não ordenou que se virassem os altares – um dos mais graves atos contra a tradição da oração no mundo inteiro. Papa Paulo não necessariamente quis pôr fim à tradição do sacerdote, junto com os fiéis, ficar voltado para o Cristo Crucificado, o Cristo que deve vir do Oriente; nem quis suprimir a tradição conforme à qual o sacerdote dirige suas orações, junto com a assembleia, a Cristo, presente sobre o altar na forma dos dons transubstanciados. Esta inversão da orientação da oração fez mais dano na Europa e nos Estados Unidos do que todos os teólogos relativizadores, desmitificadores e humanizadores. De imediato, pareceu ao simples crente que as orações não eram mais dirigidas a Deus, mas à assembleia. Agora, o propósito da oração era deixar a assembleia de bom humor, em bom estado de espírito a fim de que pudesse celebrar a si mesma como "Povo de Deus". Coisa parecida aconteceu quando a Sagrada Comunhão foi dada na mão, em vez de na língua, como antigamente. Esta mudança também não foi prevista pelo Missal de Paulo VI: ela foi forçada por alguns bispos alemães.

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Por Luís Augusto - membro da ARS

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